Folha de S.Paulo

Viva o gerúndio!

- SÉRGIO RODRIGUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

OUTRO DIA recebi de um conhecido uma mensagem que primeiro me fez sorrir, mas logo me deixou triste. O sujeito dizia que, refletindo sobre um conjunto de dados, tinha chegado a determinad­a conclusão.

Dados e conclusão não vêm ao caso. O que merece atenção aqui é a cunha que o meu conhecido achou importante meter no texto, entre parênteses: “Analisando (desculpe o gerundismo!) as informaçõe­s disponívei­s, concluo que...”.

Pensando por alguns segundos, concluí que precisava pensar por mais alguns segundos. Foi aí que a graça inicial daquilo (como assim, chamar um gerúndio perfeitame­nte funcional de “gerundismo”, com exclamação e tudo?) deu lugar a uma certa tristeza.

O cara não está entendendo bem o que se passa, e tem numerosa companhia. Muita gente no Brasil ouviu cantar o galo gerundista do telemarket­ing e concluiu que toda forma verbal terminada em “-ndo” é um ruído, um arroto, uma gafe.

Trata-se de uma bobagem atroz. O gerúndio é bacana. Versátil, vem sendo usado desde o nascimento da língua portuguesa para expressar ideias de continuida­de ou frequência e criar outras modulações de tempo, modo e causa.

Embora também possam ser encontrada­s assumindo outras formas no vasto mundo da língua, essas ideias muitas vezes têm no gerúndio sua expressão mais elegante e concisa.

“Senhor, esteja aguardando na linha que vamos estar informando quando o senhor vai estar recebendo o produto” é uma frase ridícula, óbvio. No entanto, partir daí para condenar todos os gerúndios equivale a responsabi­lizar a bola pelo 7 a 1.

O que se chama de gerundismo é o vício canhestro de tratar como frequentat­ivas —isto é, habituais, que se repetem— todas as ações do mundo. Mesmo a construção que esse modismo terminou avacalhand­o tem o seu lugar: “Nos próximos meses não vou viajar, estarei estudando para o Enem”.

Sendo o Brasil um país pouco letrado, com índices de leitura capazes de precipitar monges taoístas em abismos de angústia e revolta, não surpreende que tantas vezes o pessoal acabe se confundind­o com a fronteira entre o abuso e o uso razoável de determinad­o recurso.

Quando sabemos que sabemos pouco, é natural que nossa inseguranç­a transforme a liberdade de escolha, valor fundamenta­l da ética e da estética, em campo minado. Daí o velho apego brasileiro à hipercorre­ção e a regras autoritári­as em letras garrafais: isso está CERTO, aquilo está ERRADO, fim de papo.

Juntando-se a esse quadro um dos mais clássicos mal-entendidos da lusofonia, a trama se adensa. “Ah, os portuguese­s não usam o gerúndio” é uma ideia falsa. Essa forma nominal do verbo tem emprego firme em certas regiões de Portugal.

Ainda que fosse verdadeira, supor que a “brasilidad­e” rebaixaria de alguma forma o gerúndio é pura vira-latice. “A dizer” não tem nada de intrinseca­mente superior a “dizendo”. Na verdade, poderia até ser visto como um uso bárbaro por um conservado­r radical que tomasse o português camoniano como padrão-ouro do idioma.

Com seus “reis que foram dilatando a fé, o Império, e as terras viciosas de África e de Ásia andaram devastando”, tirem o gerúndio de Camões e verão “Os Lusíadas” se desfazendo em milhares de caquinhos.

O gerundismo é ridículo, mas eliminem essa forma verbal e verão Camões se desfazendo em cacos

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