Folha de S.Paulo

Tenso e esvaziado após conflito, tour na Rocinha narra detalhes da ‘guerra’

Desistênci­as de turistas para passeios têm sido frequentes; favela segue ritmo normal, mas tem imprevisib­ilidade, diz guia

- MARCO AURÉLIO CANÔNICO

“Não está dando para entrar.” Para quem está na carroceria de um jipe de turismo rumo a um passeio na favela da Rocinha, na zona sul do Rio, a frase não é muito animadora. Ainda mais vinda da própria motorista do veículo.

“Não posso me negar a ir, sou funcionári­a. Mas, se eu ouvir um ‘plá’, eu pulo dessa porra andando.” Os ocupantes do carro riem da franqueza da condutora. Seu colega de trabalho, o guia que leva os visitantes pelos caminhos da favela, contempori­za.

“Posso dizer que a Rocinha, de certa forma, está sob controle. Foi uma das primeiras favelas abertas ao turismo, e ele é muito importante para a vida de muitos ali, para o comércio local”, diz ele.

A conversa na última quinta (5) aconteceu enquanto o jipe —que levava o repórter e o fotógrafo da Folha— esperava por mais dois turistas em um hotel de Copacabana. Cada um pagaria R$ 145 (em dinheiro, ao fim da jornada) por um passeio de três horas pela maior favela do Rio.

Os demais visitantes não apareceram, no entanto. Tal desistênci­a tem sido frequente desde que a Rocinha tornou-se palco de uma violenta disputa de facções por seu controle —história que seria narrada em detalhes pelo guia ao longo do tour.

O conflito entre criminosos levou ao cerco da favela pelas Forças Armadas por uma semana em setembro. Nesta terça (10) e quarta (11), tropas do Exército voltaram ao local. LAJE E BECO Enquanto sobe para a favela pelas ruas da Gávea, bairro rico da zona sul do Rio, a motorista antecipa o que os visitantes vão ver. “Num dia normal, é um passeio maneiro. Você vai lá em cima, vai na laje, desce por um beco feio pra cacete, tem os meninos que fazem capoeira, tu passa por um lugar que tem os malucos lá, anda pelo comércio.”

A reportagem busca confirmar o óbvio: “os malucos lá” são os traficante­s armados? “É, mas, até invadir, ninguém mexia com ninguém. Você só não pode tirar foto deles, entendeu? Só que a favela está em guerra.”

Uma vez no alto do morro, o carro para num ponto de venda de artesanato, de onde também é possível avistar a lagoa Rodrigo de Freitas e o Corcovado, num cenário ótimo para tirar fotos.

“Brasileiro, brasileiro? Bem-vindo à Rocinha” diz um camelô a seus únicos clientes do dia. Sua barraca tem camisetas e quinquilha­rias desenhadas com o nome e os cenários da favela. Ao lado, outros ofertam pinturas e quadros de artistas locais.

Simpáticos, os vendedores tentam encorajar os visitantes. “Tá tranquilo, a maior paz”, afirma um. Outro grava os forasteiro­s com o celular para, diz ele, “mostrar para o pessoal que está tranquilo”.

Durante a caminhada que se inicia nesse ponto, a tensão só é perceptíve­l nos detalhes: nos olhares desconfiad­os, no passo rápido, no grito de “não é para ficar parado de bobeira” que um passante solta quando cruza com os turistas.

Ao longo da estrada da Gávea, principal artéria da Rocinha, a favela segue seu ritmo normal. O problema, explica o guia, é a imprevisib­ilidade, dado que duas facções estão disputando o morro.

Em cima de uma laje com visão panorâmica da favela e da praia de São Conrado, ele faz a radiografi­a da comunidade. Aponta a área chamada de Roupa Suja, “a parte mais barra pesada, colada ao morro Dois Irmãos”, e as ruas 1 e 2, principais vias internas.

“São as áreas de confrontos. Hoje, a parte de cima está com o Rogério 157, que mudou de facção e agora é Comando Vermelho. E a parte de baixo está com os caras do Nem, da ADA (Amigos dos Amigos). E tem a polícia.”

De fato: ao longo da descida, é possível avistar a cada 300 m pequenos grupos de policiais com fuzis. Há também veículos do Bope, além do “caveirão”, todo branco, parado em frente à UPP (Unidade de Polícia Pacificado­ra).

Diversas empresas oferecem tours pela Rocinha, majoritari­amente para estrangeir­os. Segundo o guia, antes da crise atual, sua empresa fazia dois passeios por dia, com grupos de oito pessoas, principalm­ente europeus e asiáticos. “Japonês gosta muito, israelense adora uma favela.”

Um casal de costa-riquenhos havia feito um passeio com o mesmo guia, na segunda-feira (2). Ele foi interrompi­do após ouvirem tiros.

Na descida do morro, os três foram fotografad­os e entrevista­dos por repórteres. Sites e jornais cariocas noticiaram: “Turistas ficam no meio do tiroteio na Rocinha”. O guia foi identifica­do e não voltou à favela desde então.

“Fiquei com medo de me pegarem e me baterem”, diz. Na saída, ele se benze. Faz isso sempre? “Quando entro e quando saio. Ali é brabo.”

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Fotos Ricardo Borges/Folhapress Vista do Rio durante tour na favela da Rocinha
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Movimento dentro da comunidade que é alvo de conflito de facções na zona sul do Rio

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