Folha de S.Paulo

CRIANÇA DO DIA MARIA LUIZA SOUZA NUNES, 11 ANOS Meu sonho é ver a rua limpa, o país todo limpo

Estudante da zona norte faz apelo por redução de poluição urbana, do lixo à fumaça dos carros, e prega combate às drogas e ao álcool

- PAULO SALDAÑA

Maria Luiza quer mudar o país. Pelo menos é o que diz em relação a problemas como lixo, poluição e inseguranç­a —temas que ela demonstra conhecer bem.

“Eu posso até tomar um banho, mas eu me sinto suja”, diz ao discorrer sobre a sujeira das ruas. Aos 11 anos, Maria Luiza Souza Nunes está no 5º ano na escola estadual Deputado Sergio Claudino dos Santos, na Brasilândi­a, zona norte da capital paulista. É do tipo de criança detalhista e que emenda os assuntos.

Mora no Jardim Carombé, próximo à escola, com a irmã de 4 anos, a mãe, que trabalha com bicos, e o pai segurança. Uma região com raras praças e distante de parques.

O acesso à cidade, urbanismo e habitação foram os temas da entrevista. Folha- Você gosta de estudar? Acha importante?

Maria Luiza - É importante porque você vai ser alguma coisa na sua vida quando você crescer. Mas o meu sonho é ser jornalista e policial. Por que os dois?

Policial acho legal, ele ensina o que pode e o que não pode. E, assim, quando somos jornalista­s, a gente fala o que vai acontecer e o que não vai, o que já aconteceu. Qual foi a indicação pra saber que é legal ser jornalista?

Foi na televisão e internet, e ensina também, igual a você, o seu papel. E na televisão fala o que vai acontecer, o que está pra acontecer. Tipo: presente, futuro e passado. E policial? Você conhece?

Conheço. O professor de Proerd [Programa Educaciona­l de Resistênci­a às Drogas e à Violência, da Polícia Militar, presente na escola dias antes da entrevista]. Ensina bastante, teve vezes de puxar um pouco no pé, mas é bom. Pra você poder crescer, aprender, ser alguma coisa na vida e ter orgulho de você mesma. Seu bairro é violento?

Lá tem muita violência. Igual ontem, quando cheguei da igreja tinha a Rocam e aquele helicópter­o da polícia rondando. A Rocam brigando com o rapaz pra ele descer, se não já ia partir pra agressão.

Mas depois estavam os que trabalhava­m na biqueira. Porque lá onde eu moro tem. Uma no fundo, aqui na frente, uma do lado. E lá acontece bastante violência, briga, mas é só. Lá também mora um policial. Ele é legal, não é igual os outros que partem pra agressivid­ade. Ele entende. Mas tem vezes que tem de partir pra agressivid­ade, querendo ou não, porque esse é o trabalho. E você acha muito comum essa agressivid­ade?

Vi ontem, presenciei. Minha irmãzinha ficou assustada, mas depois se acostuma. Ao correr do dia tem que aprender o que é, o que não pode. Como: fumar é uma das coisas que não pode mesmo. O professor de Proerd ensinou. Principalm­ente bebidas alcoólicas. Não pode. Vai estragar todo seu corpo. Sobre quem bebe, usa drogas, que fica na biqueiras. Como resolver esse problema?

Ai eu não sei… Eles acham que isso é a vida deles, eles ganham mais dinheiro, que é vocação. Conheço uma pessoa que trabalha lá. Eu perguntei pra ele, sou muito de perguntar: “Mas por que você gosta?” Ele fala “todo mundo gosta, porque ganha mais dinheiro, é mais fácil”. Aí eu falei, “não é mais fácil você fumar, estragar sua vida com porcarias”. Uma coisa que não é adequada pra gente, pro nosso organismo. Mas ele falou que gosta porque ganha mais dinheiro, mais aumento. Muita gente faz isso por aqui?

Na minha rua faz... bastante. Eu acho um absurdo, porque é bem na minha viela. Se eu pudesse eu mudaria muito isso. Mas eu sei que tem algumas drogas que ajudam também na saúde. Disso eu sei, tipo câncer. Como meu vô. Não vai curar ele, por quê? Você sabe qual tipo de droga ajuda no câncer?

O tipo de droga eu não sei. Mas passa bastante na televisão, vem até embalado assim. As drogas que faz bem à saúde, tuuudo bem. Agora as drogas que não faz bem, como bebida alcoólica, tiraria. Bêbado só causa prejuízo, igual aconteceu na minha rua.

A mulher do policial estava bêbada e o som estava super alto. Ela pediu com delicadeza pra abaixar, porque o bar é perto e era a noite inteira. Aí nesse dia ela estava bêbada, chorando, ela estava deprimida. Pegou a arma. Só que o tiro não garrou em ninguém. Pegou sim na parede, mas não matou ninguém. Mas não foi porque ela quis, foi a bebida. O que seus pais fazem?

A minha mãe não trabalha, faz bicos, mas meu pai trabalha. Aí os dois se ajudam. Como meu cachorro morreu, ficou um pouquinho apertado. Levou ele no veterinári­o, tentou animar ele, ia entubar e foi na hora que ele se foi. Aí gastou muito dinheiro?

Gastou, só que está sendo muita tristeza, porque ele sempre me acordava pra eu abrir o portão para minha mãe quando ela chegava. Uma tristeza. Eu tenho, sim, a foto dele no meu celular. Ele se chamava Luck, era bem bonitinho, só que como ele se foi… Meu pai disse que, quando a coisa desapertar, vai comprar um igual ao Luck. Vai dar uma aliviada, mas não vai ser a mesma coisa, porque ele sempre latia pra me acordar. Você mora num lugar bonito?

Não vou dizer que é muito bonito, porque não é. A única coisa que eu queria é que a rua fosse limpa, porque a rua está cheia de sujeira, principalm­ente quando chove, entope os bueiros tudo. Mudaria isso, compraria até uma lixeira, mas como tá apertado, não dá. Você gosta de brincar na rua?

Eu só brinco quando tem alguém da família por perto. Mas não fico muito porque eu não gosto muito da rua. Tem muito lixo, tóxico, não me sinto muito bem naquele lugar. Só tem uma praça com rochas pra sentar. E é sujo. Porque os meninos da biqueira acabaram fazendo um desastre. E as árvores estão morrendo, queimadas, que é tóxico... Mas lá em casa tem o negócio de oxigênio e a gente usa pra não sentir o ar poluído, principalm­ente dos carros. Você acha que precisaria diminuir o número de carros no seu bairro? Como faria?

Eu diminuiria todos. Eu botava placa, falava, explicava o motivo. Porque tudo tem o seu motivo, hora e seu momento.

Se eu fosse uma jornalista mesmo eu ia explicar na televisão e em todo lugar. Algumas pessoas até param de andar de carro, sim. Tira o combustíve­l, guarda num lugar bem seguro, fora de alcance de crianças. Porque tem criança que é ousada, danada, quer botar fogo na casa. Tem que esconder. Eu falaria pra parar de andar de carro e andar a pé. Faz bem à saúde. E para quem trabalha longe, vai a pé também?

Não… porque aí vai cansar —mas faz bem. Compra uma bicicleta, faz bem também. Meu pai mesmo, ele gosta de andar de bicicleta, vai até na chuva —mas faz mal. Ele vai de bicicleta até o trabalho dele. Já fui lá, é bem longe. Eu compraria uma bicicleta, uma mochila assim de costas e ia. Você não tem bicicleta?

Eu tenho, mas minha bicicleta já se foi. Eu ganhei de uma amiga da minha mãe. Ela não estava muito da boa, mas eu quis. É dada de coração, né. Eu gosto de coisas dadas com corações mesmo. Tem conserto, mas vai ser um prejuízo maior do que o do veterinári­o do cachorro. Maria, qual foi o lugar mais longe que você foi na cidade?

Já fui no centro. Fui comprar uma revistinha pra fazer o trabalho da escola. Mas eu não lembro mais o lugar. Fui comprar porque foi utilidade, só que eu paguei. Depois eu perguntei pro moço: “Você tem resto pra levar?” Pra eu levar pras pessoas que não têm. É bom utilizar papel, só não pode jogar no lixo. A gente pode utilizar algum dia.

Eu estava com chinelo bom esses dias, aí eu dei. Só que o meu quebrou, não foi querendo. E eu precisava tanto de um chinelo, mas eu tinha dado. A menina estava sem também, aí foi por uma boa causa. Por que você deu? Você gosta de fazer o bem para os outros?

Eu dei para uma menina que não tinha muitas coisas. Doei. Dei o chinelo pra ela porque a mãe dela estava com uma dificuldad­e maior que a minha vida. Ela estava andando descalça. Dei mais por causa da saúde do pé, porque tem caco de vidro e é perigoso. Doei brinquedo que eu tinha porque eu tenho bastante, e ainda vou doar mais. E eu não brinco muito, só fico assistindo, fico lendo, porque lá na minha casa tem bastante livro. É uma das coisas que eu não quero doar pra ninguém, porque eu leio, releio. tem piscina, essas coisas, nunca fui... porque meu pai e minha mãe não tá em condições. Mas, assim, eu queria ser popular. Tipo a Larissa Manoela. Minha prima tem um amigo que foi escolhido, eu pedi pra ela o contato, pra eu conseguir ajudar meu pai e minha mãe. A construir a casa que minha mãe tanto quer. Mas como ele poderia te ajudar e você ajudar sua mãe?

Assim, eu ia conseguir um trabalho, tipo ser artista e cantora. Eu sei cantar, eu canto na igreja. Tenho um pouco de vergonha, mas vai. Porque... Tá apertado pra minha mãe? Tá. Mas eu posso conseguir a casa do sonho dela e o sonho do meu pai, que eu não sei o que é, ainda vou perguntar porque eu sou super curiosa. O sonho da minha mãe é ter uma casa. Limpa, bonitinha, porque a casa que a gente tem não é muuuito bonita, é pequeninin­ha. E como a gente paga aluguel fica mais apertado. Eu vou conseguir o sonho da minha mãe, se Deus quiser. E qual é o seu sonho?

Meu sonho… vixi, vai ser difícil... tenho cada sonho maluco. Mas eu tenho: sabe aquela tirolesas, que cai assim na piscina? Ai... aquele é meu sonho, cair por ali. Mas eu vou ter que estar segura, com aqueles negócios pra não cair na água com tudo. Mas aquele é meu sonho, sou super doidinha. E ir nos parques também, nos que se arrisca, não com a própria vida, fazer um movimento, uma brincadeir­a bem legal. Esses são meus sonhos bem doidinhos, mas são meus. Meu jeitinho. Você queria falar alguma coisa que eu não perguntei?

Sim. Eu queria mudar o país. Mudar tudo que tem aqui. Queria parar com esses negócios de carro, que já polui muito. Os lixos que ficam na rua. E não é culpa dos lixeiros, nós mesmos temos que tomar conta das sacolas. Eu falo pra minha mãe colocar duas sacolas. Mas amarra bem. Se tiver pelo menos uma lixeira daquele tamanho que dá pra todo mundo botar seu lixo.

Porque o país não está limpo. Eu posso até tomar um banho, mas eu me sinto suja. É isso que o país está. Isso tudo, o formato todo, está tudo sujo. Principalm­ente as águas do esgoto ir para as águas limpas. É um absurdo você estar lá na sua casa, lá no lugar que tem rio, e vem aquele esgoto fedido. Minha opinião é mudar. Ver se o país quer mudar, mas, querendo ou não, tem que mudar. Porque é bom para saúde do país e para nossa saúde. Sentar num lugar que está limpinho. Não vai estar cheiroso, mas vai estar limpinho pelo menos.

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Quadra da escola estadual Deputado Sergio Claudino dos Santos e, ao fundo, vista para o bairro da Brasilândi­a, zona norte Sala de aula onde Maria Luiza e seus colegas estudam diariament­e 2

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