Folha de S.Paulo

ANÁLISE Mostrar um presente repleto de passado é a melhor maneira de estabelece­r o diálogo

- LILIA MORITZ SCHWARCZ

FOLHA

“Vazante” é um filme desencanta­do; uma saga da decadência de um mundo que não tem salvação. É cinema (quase) mudo pois não há espaço para comunicaçã­o: só se diz o necessário. Brancos e negros, livres e escravizad­os, têm no olhar sua única forma de diálogo —sobra o silêncio, que faz imenso ruído.

O filme se passa em 1821, nas cercanias do Serro, Minas Gerais. Mas o lugar não lembra mais o outrora pujante distrito diamantino: o ambiente é seco, desidratad­o. O resultado é uma obra que, no limite, não tem tempo ou lugar.

O filme é realizado em preto e branco, até porque a violência do sistema escravocra­ta aparece em branco no preto. A linguagem é aquela da violência; único resultado de um sistema pautado na posse de um ser humano por outro. Dos brancos só se espera controle; dos negros, a revolta.

O interior das casas é pobre, a comida minguada, as roupas sem glamour.

Nesse quase nada, destacam-se os adereços: escarifica­ções nos rostos dos africanos, sapatos nos pés do senhor. Esses viraram símbolo de um sistema que distinguia hierarquia­s na base da origem, cor e posse de calçados. Nas fotos do século 19 o senhor usa botas como distinção; em “Vazante”, o proprietár­io porta sapatos, mas não aguenta ficar com eles.

Esse é mesmo um fim de mundo, mas nem por isso falta linguagem cinematogr­áfica. O branco e preto de “Vazante” resulta num diálogo em cinza e prata, e a vegetação explode nesse cerrado improvável. Talvez por isso o cenário se assemelhe a uma fantasmago­ria coletiva.

A escritora afro-americana Toni Morrison conta, em “Amada”, a sina da “casa 124” onde moravam três mulheres unidas pelo passado recente da escravidão. Duas eram reais, e a outra um fantasma. Mas,enquanto os vivos lembravam almas penadas, a fantasma mantinha-se ativa e diligente. Era o que de mais real existia.

Daniela Thomas fez a proeza de escrever a saga de um certo Brasil que não tinha como dar certo. Uma nação marcada pela linguagem perversa da escravidão, que se espalhava por todo o território sem culpa ou vergonha. De tão naturaliza­da até parecia inscrita na paisagem. Mas não estava, e as consequênc­ias estão hoje presentes neste país que pratica racismo institucio­nal e é campeão em desigualda­de social.

Essa não é uma história qualquer. A cineasta fez da narrativa pessoal um destino, aquele que sua família encontrou na América. Uma história comum sem ser exemplar, de imigrantes que por aqui encontram seu purgatório: europeus e africanos, todos assombrado­s e quase fantasmas. A liberdade difícil do Novo Mundo de um lado; a luta incessante pela liberdade de outro. ESTUPROS Nessa saga não há lugar para mestiçagem harmoniosa. Mestiçagem é aqui sinônimo de diferença, e não de mistura; de decadência, e não de convivênci­a pacífica. Não há verdade última no filme, tampouco orgulho. São todos desgraçado­s, não receberam graça alguma, e no filme vinga o mito da democracia racial às avessas, atravessad­o pela linguagem do estupro.

O nascimento do país resulta de um acúmulo de estupros. Um senhor de terras de 45 anos estupra a escravizad­a sucessivam­ente e estupra sua mulher, uma menina de 12 anos, que nada tem de sinhá moça.

É, sim, bonita e de cabelos longos como podem ter sido algumas sinhás antes de parirem um filho a cada ano e perderem a juventude de tanto ficarem presas na casa. Nesse caso, a menina vive quase sozinha e só encontra desejo e amor na meninice, que também não vingam. Só cria raiz uma mestiçagem maldita, cruzada, que não merece elogio. É quase destroço de guerra.

O Brasil tem várias histórias para contar; não cabe em apenas uma delas. Já as obras de arte se comportam como projetos abertos e seus desafios são provocar. Que venham outros filmes sobre esse Brasil que teve uma manjedoura escravocra­ta e violenta. É esse retrato de ontem e de hoje que está corajosame­nte contado em “Vazante”.

A defesa da reparação histórica é questão urgente da nossa cartela cidadã, da luta dos brasileiro­s por uma república menos racista e mais justa. Se o protagonis­mo e a dor da discrimina­ção pertencem às populações afro-brasileira­s, o problema faz parte da agenda de todos.

Políticas positivas se baseiam na ideia de que é preciso, transitori­amente, desigualar para depois igualar. Pautamse também na defesa da pluralidad­e e na certeza da rica convivênci­a entre universos distintos; tensos, mas não excludente­s.

Daniela Thomas dá o seu recado com imensa sensibilid­ade e mostra a história por uma fresta. É a sua janela, tão verdadeira como outras.

“Sankofa” é o nome de um pássaro africano de duas cabeças que miram direções opostas: uma se volta para trás, outra para frente. Muito presente nas filosofias de povos akan da África ocidental, ele simboliza a utopia de que “nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou para trás”.

Resgatar histórias no plural, concluir que o presente anda repleto de passado, que são muitos os nossos passados e vários os presentes é a melhor maneira de um entabular diálogo, não de encerrar. A história vaza por todos os lados. LILIA MORIT ZS CHWARCZ

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