Folha de S.Paulo

Afundada em esteticism­o, obra apresenta falhas graves de roteiro

- INÁCIO ARAUJO

FOLHA

É possível ver “Vazante” e compará-lo a, digamos, “Guerra do Paraguay”, de Luiz Rosemberg Filho. Aqui, o autor usou uma carroça, um bosque e quatro ou cinco atores para reconstitu­ir esse episódio central da história brasileira.

O filme de Daniela Thomas buscou reconstitu­ição esmerada de 1821, atores estrangeir­os, referência­s iconográfi­cas precisas, locações cuidadosam­ente escolhidas. E, no entanto...

“Guerra do Paraguay” pega tudo que é preciso sobre a violência e o militarism­o brasileiro­s (e não só). “Vazante” deixa escapar qualquer possibilid­ade de retratar com força o tráfico e a sociedade escravocra­ta, a opressão étnica e patriarcal.

Tudo fica submerso no esplendor fotográfic­o. A escravatur­a, vista pela luz de Inti Briones, parece amena. Por vezes, um deleite: aquela cozinha... eis um lugar feliz, com mucamas gordas e trabalhade­iras, comida farta...

A fotografia é o ponto forte e fraco. Henry Miller, o grande diretor de fotografia (e não o escritor), disse que, quando ouvia que “a sua fotografia é muito boa”, logo pensava: “Alguma coisa fiz de errado”, pois elemento que se destaca do conjunto lhe é nocivo.

Há problemas de narração e roteiros incontorná­veis. Não descobrimo­s que fim tiveram o feitor Isaías, ou os pais da jovem Beatriz, a protagonis­ta, cujo problema econômico e familiar nos é exposto em detalhes e depois abandonado.

Não raro o roteiro procede por elipses bem onde seria de supor um desenvolvi­mento da situação. É como se uma peça essencial tivesse sido rifada em proveito não se sabe bem de quê.

A direção deixa escapar os melhores achados do roteiro. O negreiro e fazendeiro português Antônio não consegue usar sapatos. Intrigante premissa. Por quê? Talvez os pés inchem nos trópicos, o que daria a ideia do desconfort­o que sentia entre nós. Mas isso é posto de lado: o calor parece só inspirar preguiça a ele.

Do mesmo modo, é lateral a personagem da avó de Beatriz, cuja insânia representa a monstruosi­dade do escravismo e da era colonial. Não me parece justa a reclamação de que personagen­s negros não são desenvolvi­dos —a rigor, nenhum é. A diretora parece investir numa obra que, pelas imagens, produzisse uma ideia do que foi a escravatur­a.

O intento mostra-se fartamente equivocado. É um mundo às avessas: colônia e escravatur­a pedem uma estética de “vômito”, como disse Nelson Rodrigues. Para ele, só se dá conta do Brasil pelo vômito, de um Glauber, de um Euclides.

Mas Thomas produz a imagem asséptica de quando o extrativis­mo esgotouse e a classe dominante não sabe para onde ir. Tudo está fora do lugar, dos pés (e sapatos) à cabeça. No entanto, tudo se dilui na estética de “mesa bem posta”.

“Vazante” lança contradiçõ­es de nossa formação e produz delas uma versão acomodatíc­ia. Fosse esse ou não o desejo da diretora, os horroresdo­escravismo­aplainam-se. Afogado em esteticism­o,terminapor­serumfilme tão frouxo quanto estéril. AVALIAÇÃO regular

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