‘Paquistão é um Estado militar’, diz jornalista
Perseguido por denunciar influência das Forças Armadas do país na política, repórter ganhou ação contra governo
Taha Siddiqui foi convocado para interrogatório, mas, temendo ser preso ou morto, não compareceu
O jornalismo entrou por acaso na vida do paquistanês Taha Siddiqui, 33. Formado em administração de empresas em Karachi, o “jornalista acidental”, como se descreve, começou como analista de finanças, passou a produtor de TV e então, seguindo conselho de amigos, aventurou-se na reportagem.
Em alguns anos, especializou-se na cobertura de temas militares e de segurança em zonas de guerra. E então os problemas começaram.
“Sempre fui crítico das pegadas deixadas pelo Exército do Paquistão para além de seu papel de defesa. O Paquistão é um Estado militar, e muitas das minhas histórias eram sobre o envolvimento militar na política, nos negócios, nos assuntos sociais”, conta Siddiqui.
Em 2014, ele levou o prestigioso prêmio francês Albert Londres pelo documentário “A Guerra da Pólio”, sobre a campanha contra a vacinação empreendida pelo Taleban. Chefe de Redação do indiano WION e correspondente do americano “Christian Science Monitor”, do alemão “Die Welt” e do francês France24, Siddiqui também colabora para o “New York Times”.
“Posso parecer paranoico, mas [depois da projeção dada pelo prêmio] senti que estavam vigiando a mim e a quem me visitava. Uma amiga foi avisada de que não deveria
TAHA SIDDIQUI
jornalista paquistanês nos ver [a mulher dele também é jornalista] pois éramos ‘más companhias’”, lembra.
“Alertas” chegavam de todos os lados. “Comecei a receber ligações de amigos jornalistas, de amigos que trabalhavam para o governo e às vezes diretamente de pessoas do Exército pedindo que parasse de criticar os militares. Eram amigáveis e às vezes brincavam sobre como eu poderia desaparecer.”
O tom ligeiro desapareceu em maio passado, quando a Agência Federal da Investigação [FIA, na sigla em inglês], sob comando dos militares, foi atrás dele com acusações formais de terrorismo e crimes cibernéticos. INTERROGATÓRIO Na ocasião, uma pessoa que se identificou ao telefone como Noman Bodla, vicediretor do Departamento de Contraterrorismo da FIA, convocou-o para um interrogatório na sede da agência.
Siddiqui não compareceu. Sabia que colegas que o haviam feito tinham desaparecido ou sido detidos ilegalmente. Após o telefonema, notou a presença de pessoas à paisana diante de sua casa. Passou a restringir seus movimentos e a informar seu paradeiro a amigos e familiares.
O jornalista deu entrada então na Alta Corte de Islamabad a um processo por assédio contra FIA, Ministério do Interior e Noman Bodla.
“Quis iniciar um debate sobre a liberdade de expressão. Todos os meus colegas jornalistas exercem autocensura. Fui à Justiça para que o governo respondesse em público o que podemos ou não dizer, e por quê”, diz ele. “Também sinto que, ao tornar minha luta pública, ganho um pouco de proteção.”
Segundo o Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ), o Paquistão é o oitavo país mais perigoso do mundo para o exercício da profissão. Lá, 89 profissionais morreram desde 1992.
A corte proferiu sentença favorável a Siddiqui, determinando que a FIA pusesse fim à intimidação. Dois dias depois, o jornalista foi intimado a um novo interrogatório. O processo continua, mas com adiamentos constantes.
O Ministério do Interior sustenta que não faz nada de ilegal. Segundo o ministro Ali Khan, a Constituição impede que alguém “humilhe” as Forças Armadas, o Judiciário ou a religião nacional, o islã. “Esse vale-tudo da mídia é inaceitável para uma democracia”, afirmou a meios locais. JORNALISMO LIVRE “No Paquistão, é quase impossível ser um jornalista independente. As organizações de mídia locais têm interesses econômicos, afiliações religiosas e ligações com os militares”, diz Siddiqui. “O conflito entre militares e militantes resulta em uma ameaça dupla que afeta jornalistas.”
Em maio, a FIA publicou uma lista com mais de 200 usuários de mídia social que teriam postado “conteúdo antimilitar”. O Ministério da Informação, da Radiodifusão e do Patrimônio Nacional alertou para a aplicação de leis de crime cibernético contra quem postasse conteúdo considerado “propaganda negativa sobre as instituições constitucionais”.
“Quis
iniciar um debate sobre a liberdade de expressão. Todos os meus colegas se censuram. Fui à Justiça para que o governo respondesse o que podemos ou não dizer, e por quê