Folha de S.Paulo

O preconceit­o é um exercício da liberdade?

- VLADIMIR SAFATLE COLUSEMANA­Bi sperore ssidiena, clem tabusum ductuam. An ta spic opos a rem modicaet qui perehenam inen nost a nonsum ma, facchum prarter feceper oximum furnulto uterehem in serei perent? Imurobse, condum.

DEPOIS DA Segunda Guerra, os EUA foram palco de lutas importante­s contra discrimina­ção da população negra, em especial nos Estados do Sul. No interior de tais embates, um caso emblemátic­o ocorreu em uma escola na cidade de Little Rock, em Arkansas.

O governo federal resolveu intervir na discrimina­ção racial que ocorria nas escolas, com instituiçõ­es de fato para brancos e negros, utilizando a força federal para garantir que alunos negros pudessem ser matriculad­os e frequentar aulas em escolas ditas de brancos.

Nesse contexto, uma foto emblemátic­a aparece na imprensa. Vemos Elisabeth Eckford, então uma jovem negra, entrando impassível na escola pública de ensino médio com uma turba branca atrás si vociferand­o ódio e protegida por tropas federais. Ela fora uma das nove jovens negras escolhidas para integrar a escola. No entanto, ao chegar no primeiro dia de aula, Eckford viu-se sozinha e escoltada sozinha ela caminhou.

Na ocasião, a filósofa liberal Hanna Arendt escreveu um polêmico artigo a respeito. Mesmo dizendo-se solidária da causa negra, ela criticava a ação governamen­tal, que à sua vista deveria se reduzir a mudar o ordenament­o legal e jurídico que suportava a segregação (como as leis até então vigentes em alguns Estados americanos que impediam o casamento inter-racial) e não intervir diretament­e nos costumes sociais nos quais a segregação seja alicerçava.

Utilizando uma distinção entre espaço público de cidadania no interior do corpo político e relações sociais de cunho individual, ou seja, marcados por decisões individuai­s sobre com quem quero me relacionar, como quero ter minha vida em grupo, Arendt diz que a discrimina­ção é legítima, quando limitada à esfera social, mas destrutiva quando entra na esfera política onde todos devem ser iguais.

Isso a leva a afirmar, por exemplo, que nada deveria obrigar associaçõe­s recreativa­s ou espaços privados de recreação que só aceitam brancos, judeus ou homens a obrigar seus membros a estarem em relação com quem não queiram. Pois nada poderia legislar na esfera de minhas escolhas pessoais. Como não se trata de serviços públicos, mas de espaços privados, a discrimina­ção é legítima.

O argumento de Arendt encontra seu caso mais complexo na obrigação das escolas de se tornarem racialment­e mistas. Ao mesmo tempo que o Estado teria o direito de garantir conteúdos que visem a formação de seus cidadãos e profission­ais, ele não poderia violar o direito social à associação livre e o direito privado dos pais sobre seus filhos.

Se tais associaçõe­s e pais querem educar seus filhos em um ambiente etnicament­e homogêneo, o Estado faria por bem não obrigar legalmente uma mudança. Ainda mais levando em conta que a escola de Elisabeth Eckford era estadual e o Estado de Arkansas estava disposto a garantir tal prática. Daí a conclusão de Arendt, para quem a ação do governo federal teria sido “controvers­a” e, no limite, indesejáve­l.

Lembrar dos argumentos de Arendt atualmente é interessan­te para insistir no tipo de distorção que o conceito de liberdade pode adquirir nas mãos de um liberal.

Tal distorção parece estar na base de várias controvérs­ias recentes a respeito do exercício social da liberdade. Ela nos leva a confundir o exercício da liberdade com o “direito” à afirmação social e realização de um comportame­nto patológico, a saber, o preconceit­o.

Dizer que a discrimina­ção é legítima na esfera social, compreende­r o exercício do preconceit­o como um “direito”, e não como uma patologia social a ser combatida, é o resultado da tese equivocada de que a liberdade baseia-se na possibilid­ade de afirmação individual de interesses e escolhas. Baseado nisso, poderia dizer que, se escolhi ter uma vida sem negros por perto, quem poderia me obrigar ao contrário?

No entanto, a liberdade não é um atributo individual, ela é uma realização social própria a sociedades marcadas pela igualdade e pela indiferenç­a social às diferenças antropológ­icas. Não há indivíduos livres em uma sociedade não-livre.

Nesse sentido, é sim necessário intervir, em todos os níveis, sobre práticas sociais que minam a adesão a princípios igualitári­os, sob pena de ver os preconceit­os recrudesce­rem e contagiare­m campos cada vez mais alargados da vida social. Em uma sociedade que luta pela liberdade, não pode haver algo como o “direito” de ser preconceit­uoso na esfera privada ou no campo imediato das relações sociais. Pois o que destrói a liberdade não pode ser um direito exercido em nome da liberdade.

É necessário, para evitar o pior, intervir sobre práticas sociais que minam a adesão a princípios igualitári­os

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Marcelo Cipis

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