Folha de S.Paulo

Jovens barbeiros fazem mutirão de corte e unem moradores da Rocinha

Penteados grátis com distribuiç­ão de alimentos reúnem quem vive em meio a clima de tensão e guerra entre traficante­s

- LUCAS VETTORAZZO

Um grupo de quatro jovens barbeiros moradores da Rocinha se desdobra para ajudar a comunidade, mesmo em meio à tensão que toma conta da favela da zona sul do Rio —ações policiais, cerco do Exército e disputa entre facções criminosas têm sido comuns nas últimas semanas.

Vestidos com seu uniforme de trabalho, camisas da seleção brasileira de futebol, os barbeiros são cumpriment­ados por onde passam. Um grupo de meninos ainda mais novos, saídos da escolinha de futebol, de chuteiras e meião, rapidament­e os rodeia.

Os jovens são um misto de celebridad­e e exemplo para a garotada. Tratam-se dos “Guerreiros do Corte”, quatro amigos que criaram uma ação social que completou um ano e terá sua sexta atividade neste domingo (15).

A atividade nada mais é do que um mutirão de cortes de cabelo grátis com distribuiç­ão de alimentos na quadra do Clube Emoções da Rocinha, tradiciona­l casa de festas da favela.

Os cortes são feitos em crianças que levarem um quilo de alimento não perecível.

Comerciant­es patrocinam o evento, que tem cortes femininos, manicure e design de sobrancelh­as.

Os jovens tem apoio de um serviço de ônibus escolar comunitári­o que busca cerca de 50 barbeiros de outras comunidade­s do Rio para também participar da ação.

Há ainda distribuiç­ão de brinquedos, pula-pula e piscina de bolinhas para os pequenos, touro mecânico para os maiores e muita música. Tudo regado a cachorroqu­ente e refrigeran­te. JEITO DE UNIR No final da atividade, os alimentos são distribuíd­os como cestas básicas para a comunidade. O objetivo deste ano é arrecadar uma tonelada de alimentos.

“É um jeito de unir as pessoas daqui”, diz Rômulo Saad, 22. “Tivemos uma infância difícil e sabemos como é duro ser criança na favela”, emenda Igor Barreto, 26.

“O exemplo da gente ajuda também a tirar os meninos da vida errada”, diz Roger Borges, 23. “No final, é uma festa pra comunidade”, arremata o caçula do grupo, Julio Dias, 15, chamado de Mascote.

Saad, Barreto, Borges e Dias formam o GDC, ou os Guerreiros do Corte da Rocinha, como estampado nas costas de suas camisetas. Os quatro buscaram na profissão uma forma também de evitar o destino de tantos meninos que se associam ao tráfico.

Eles se conheceram no “Salão dos Bravos”, barbearia familiar na Rua 1, no alto do morro. Saad começou aos 18 anos, quando deixou Duque de Caxias para morar com o pai na Rocinha. Ele aprendeu o ofício ainda na Baixada Fluminense, com a lenda local “Deivão do Corte”. Assim que chegou, bateu na porta da família Bravos em busca de uma oportunida­de.

Barreto é nascido e criado na favela. Uma namorada o incentivou a ser barbeiro porque ele já demonstrav­a certa técnica quando cortava o cabelo do sogro. Conseguiu um emprego no salão, onde mais tarde, entre tesouras, navalhas e máquinas, nasceria a parceria e amizade que resultaram nesse projeto.

Borges é o mais experiente, o “patente alta” do grupo. Aos 17 anos recebeu o ultima- to da mãe —precisaria arranjar um emprego e sair de casa para morar com a mulher, àquela altura grávida de seu primeiro filho. Hoje ele espera seu segundo filho e paga as prestações da casa própria.

Dias, o Mascote, mora com a mãe e a avó no morro. Ele passava as tardes depois da aula no salão e um dia deixou a barbearia inspirado. Pegou dois primos como cobaia, mas o resultado não saiu como o esperado. Passou então a cortar o cabelo de conhecidos no salão sob a supervisão dos amigos, que lhe ensinaram o ofício. Descobriu um talento. CLIENTELA O grupo tem hoje a própria barbearia na Rua 1. Mascote não faz parte da sociedade, mas montou uma estação de trabalho na casa da mãe. O restante tira serviço no salão, que abre de tarde e fecha só depois da meia-noite.

Cada um embolsa o faturament­o dos cortes que faz. Numa sexta-feira chegam a cortar cabelos de 50 clientes. Eles conseguem tirar pouco mais de R$ 2.000 de salário.

O mutirão ajudou os meninos a serem reconhecid­os. O dono de um estúdio de tatuagens doou desenhos aos Guerreiros, menos a Mascote, ainda menor de idade. Os três optaram por tatuar os braços com referência­s ao ofício.

Borges tatuou uma máquina de cabelo, uma navalha e as iniciais do grupo. Barreto colocou o nome dos avós ladeados por tesouras. Saad homenageou um amigo que perdeu a vida no crime. “Na última conversa que tivemos ele me incentivou a manter o trabalho. Ele disse: ‘Vai trabalhar, vai buscar sua vida’.”

Um corte na Rocinha custa entre R$ 15 e R$ 18. No mutirão, a população tem a possibilid­ade de gastar muito menos, cerca de R$ 3, que é quanto custa um quilo de arroz a ser doado na atividade.

O corte da moda é o chamado “disfarçado” ou “degradê”, que consiste em um corte rente na base da cabeça e ao redor da orelha.

Os fios são deixados mais longos no topo. O nome se baseia na ideia de que não seja possível perceber as linhas formadas pela diferença de compriment­o em cada parte da cabeça. Há ainda a variação com o uso da navalha, o “navalhado degradê”.

No fim do dia do mutirão, os guerreiros esperam ter conseguido trazer uma tarde de lazer para a comunidade.

Mais do que isso, esperam que a iniciativa leve ao surgimento de outros barbeiros na Rocinha. “Quem sabe, no futuro, aqui não vai ser um lugar onde os donos de salão dos shoppings em São Conrado vão vir buscar profission­ais”, sonha Barreto.

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Ricardo Borges/Folhapress Da esq. para dir., Julio (15), Igor (26), Rômulo (22) e Roger (26); abaixo, detalhe do corte feito pelo grupo
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