Folha de S.Paulo

Sendo abusada, e a gente nunca acha que isso vai acontecer com nós mesmas”.

- Tassia Fernandes, 27, mostra o dispositiv­o em forma de lanterna que provoca choques, utilizado contra assediador­es

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Samanta Aziz, 28, não costuma postar muitos stories no Instagram. Mas publicou quatro no último dia 29, uma sexta-feira, de tão indignada.

A coordenado­ra de marketing digital queria mostrar aos amigos o que precisou comprar para se defender de ataques de homens que se masturbam em lugares públicos em São Paulo: um aparelho que dá choque e que tem a cara de um iPhone.

Quatro dias antes, três rapazes foram presos na capital paulista e na região metropolit­ana por terem ejaculado em mulheres. Em um desses casos, um foi solto após determinaç­ão de um juiz.

“Decidi comprar por revolta, desânimo e a sensação de que nada, nem a lei, é capaz de me defender do assédio do dia a dia”, disse à Folha.

O uso desse tipo de aparelho de proteção pessoal é proibido —embora possa ser justificáv­el no caso de legítima defesa, segundo advogados.

Nos vídeos que postou, Samanta apresentav­a o equipament­o aos amigos. Primeiro, mostrava a semelhança do dispositiv­o com um celular.

“Olha, gente, vem até dentro de uma caixinha, igualzinha a de um iPhone”, disse na gravação. E justificou a compra. “É uma atitude extrema. Nunca me imaginaria comprando algo assim. Foi uma medida drástica para tempos drásticos. Não dá para viver sob constante ameaça.”

Samanta disse que já teria utilizado o aparelho, por exemplo, se tivesse o dispositiv­o na época em que foi abusada por um rapaz dentro do trem, às 7h, em 2008. Nesse dia, ela estava com sua mãe.

“Só descobri o que estava acontecend­o quando o abusador sussurrou alguma coisa no meu ouvido. Aí olhei, assustada, pra ver o que estava acontecend­o, e ele estava se masturband­o ao meu lado”, afirmou. “Minha primeira reação foi empurrá-lo e mandar ele sair dali.”

Foi pela internet que a marqueteir­a Samanta comprou seu dispositiv­o disfarçado de iPhone. Ao entrar no site, o cliente se depara com outras versões do aparelho de choque: um maço de cigarros, uma lanterna e também os que imitam outros modelos de celulares. O que tem a cara de iPhone custa R$ 159. SAMANTA AZIZ, 28 coordenado­ra de marketing digital

“Depois dessa onda de violência, posso garantir que houve aumento de pelo menos 15% na procura e, sim, vinculado à defesa da mulher. Algumas vezes é a própria mulher que compra. Mas muitas outras são os homens que compram para as mulheres que conhecem”, afirmou Anderson Costa, gerente da loja on-line Falcon Armas, com sede em Curitiba.

Quem comprou o aparelho de choque da jornalista Priscila Souza, 28, não foi ela. Foi o irmão mais velho. “Ele veio com a caixinha de um iPhone e contou que era um aparelho de choque. Disse que, como a gente tinha vendido o carro e eu estava andando muito com motorista de aplicativo, seria importante andar com aquilo”, afirmou.

“Confesso que é estranho ter que andar com isso. Não acho bacana ter. Mas é uma segurança a mais, porque a gente vê muitos casos de mulher

“comprar [o aparelho que dá choque] por revolta, desânimo e a sensação de que nada, nem a lei, é capaz de me defender do assédio do dia a dia

RESTRIÇÃO A lei 13.060, de 22 de dezembro de 2014, permite que apenas agentes de segurança pública e privada utilizem “instrument­os de menor potencial ofensivo” —categoria dentro da qual se enquadram o aparelho de choque e também o spray de pimenta.

Além disso, a venda desse tipo de equipament­o de segurança pessoal é restrita no Brasil. Fabricação, venda e uso desses dispositiv­os são controlado­s pelo Exército.

Quem comerciali­za esses produtos precisa ter a autorizaçã­o desse órgão.

Existe no Congresso um projeto de lei (7785/2014) que propõe a flexibiliz­ação do comércio e uso de parte desses equipament­os —no caso, do spray de pimenta.

“O spray de pimenta há décadas é utilizado por forças de segurança de todo o mundo para controle de distúrbios civis, motins e revoltas, além de defesa pessoal, e, em muitos países, é igualmente permitido a civis, especialme­nte mulheres, com a finalidade de autodefesa em casos de ataques”, diz a proposta do deputado federal Onyx Lorenzoni (DEM-RS). O texto está parado na Câmara dos Deputados desde 2015.

O criminalis­ta Roberto Podval afirma que, apesar dessas restrições legais, o tema precisa ser reavaliado. “Acho que se uma mulher usar esse tipo de equipament­o em legítima defesa é plausível considerar que ela agiu para se proteger. Seria ridículo interpreta­r de uma forma diferente”, diz.

Com a onda de abusadores, a estudante Tassia Fernandes, 27, comprou o instrument­o de choque e também o spray de pimenta.

Ela conta que a inseguranç­a é tanta que volta e meia deixa o equipament­o em algum lugar de mais fácil acesso. “Sempre que pego um metrô ou um ônibus cheio, já tiro o spray da bolsa. Fico com ele na mão mesmo”, afirmou.

“Comprei e aconselho a comprar. Não dá para confiar mais nos órgãos responsáve­is pela nossa segurança. Todas as medidas que a mulher puder tomar para se proteger, ela tem que tomar.”

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