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Enquanto Brasil ainda engatinha, países como Estônia e Índia usam tecnologia para facilitar a vida dos cidadãos

- DIOGO BERCITO CAROLINA OMS Documento de identidade da Estônia, que concentra dados em chip

COLABORAÇíO PARA A

FOLHA

O governo brasileiro lançou nesta semana a versão eletrônica da CNH (Carteira Nacional de Habilitaçã­o), que promete facilitar a vida dos motoristas mais esquecidos. Com ele, os brasileiro­s terão o documento em seus celulares. Basta estar cadastrado.

A novidade, no entanto, está disponível apenas para Goiás —cerca de 2,8% da população do país— mostrando como o Brasil ainda engatinha no uso da tecnologia para facilitar a vida do cidadão.

Aprovada em julho, a CNH-e, que terá o mesmo valor jurídico da versão impressa, deve chegar aos demais Estados só em fevereiro de 2018.

Ainda mais distante está o Documento de Identifica­ção Nacional, que vai substituir o RG, o CPF e o título de eleitor. Sancionado pelo presidente Michel Temer em maio, ele está previsto para 2022, apesar de o governo federal discutir a implantaçã­o desde 1997.

A Folha checou como funcionam os sistemas da Estônia, que permite até votar de casa, e o da Índia, que tem o maior programa de identifica­ção biométrica do mundo. soviéticos usados pelo governo eram obsoletos, o que foi vantajoso. O país não herdou os vícios da administra­ção anterior.

O sistema estoniano, desenhado do zero nos anos 1990, é baseado na identifica­ção eletrônica. Todo cidadão recebe um número quando nasce, que é seu único documento —em vez da combinação entre RG e CPF no Brasil.

Essa identifica­ção é atualmente eletrônica. Um estoniano carrega um cartão de plástico com chip, como cartão de banco. Basta inseri-lo no computador, com o adaptador USB, e digitar duas senhas para ter acesso a todos os serviços, incluindo o voto.

A segurança é, portanto, fundamenta­l. Os cartões carregam uma complicada tecnologia de certificaç­ões digitais. O uso é constantem­ente monitorado pelo governo, que já trocou de sistema diversas vezes, após falhas.

Também é essencial que as leis acompanhem a tecnologia. O país reformou o código para se adequar a isso.

Usar o cartão em casa tem hoje o mesmo efeito de comparecer a uma agência de banco ou a uma estação policial e assinar um papel. O valor é inclusive legal, e um documento produzido assim pode ser usado no tribunal. SETOR PRIVADO

O analista Anto Veldre, do Ministério de Economia e Comunicaçã­o, por outro lado, tem suas ressalvas. Torce o nariz quando perguntado sobre adaptar o modelo ao Brasil.

“É extremamen­te difícil dar início a um projeto assim, e, às vezes, é preciso redesenhar todo o sistema”, diz. “Há uma fase inevitável, com problemas e bugs.”

Existe também um esforço alto para a manutenção, que exige revisão e substituiç­ão periódica da tecnologia. “É um trabalho duro”, diz.

O Brasil ainda não importa a tecnologia, mas ao menos um servidor público esteve no país para estudar as práticas.

João Augusto Sigora, do Ministério do Desenvolvi­mento Social, passou por treinament­o na e-Governance Academy nas últimas semanas. Ele tem interesse em aplicar a experiênci­a quando voltar ao Brasil, neste mês.

“A governança digital dá ao Estado a possibilid­ade de se reconectar ao cidadão e responder melhor a suas necessidad­es”, diz.

“O cidadão se pergunta por que sempre que interage com o Estado é sempre tão difícil. Por que fica na fila, apresenta o mesmo documento cinco vezes, em vez de ser como o Uber, apertando um botão.”

Entre os desafios brasileiro­s à implementa­ção de um modelo como o estoniano, Sigora não acha que o empecilho maior seja a tecnologia. “É a vontade política para mudar uma lógica fragmentad­a de implementa­ção das políticas públicas”, diz. O QUE PODE SER FEITO NA ESTÔNIA Dia a dia e-Banking A única transação bancária feita presencial­mente é a abertura da conta m-Parking Motoristas pagam o estacionam­ento via celular e-School Anotações podem ser acessadas pelo computador para fazer o dever de casa Saúde e segurança e-Police Policiais têm acesso a informaçõe­s vitais de bancos de dados do governo e-Health Cada cidadão tem um histórico unificado, com consultas, diagnóstic­os e tratamento­s e-Prescripti­on Medicament­os são prescritos de maneira digital Governo i-Voting Cidadãos podem votar pela internet de qualquer ponto do mundo e-Cabinet Ministério­s organizam reuniões e atas de maneira digital e-Notary Serviços de tabelião são feitos virtualmen­te 95% dos medicament­os são comprados com prescrição digital 66% da população participou do censo de 2011 via internet 30% dos votos das eleições legislativ­as de 2015 foram via internet maiores multinacio­nais indianas, a Infosys, Nandan Nilekani, para liderar a empreitada. A ideia era que setores público e privado unissem esforços para trazer eficiência e desburocra­tizar. Seu objetivo inicial era garantir que benefícios sociais como a entrega de grãos atingissem os beneficiad­os sem intermediá­rios, fraudes e vazamentos —que se tornaram comuns no país.

Para Shankkar Aiyar, professor convidado no Instituto IDFC e autor de um livro sobre o Aadhaar, um instrument­o para comprovar a identidade é crítico para o sucesso da redução da pobreza e de programas sociais. “Por décadas, o governo indiano tentou direcionar o gasto social com diferentes tipos de cartões que se mostraram ineficient­es devido ao uso de falsificaç­ões e duplicatas”, diz.

O programa está sendo implementa­do com a ajuda de empresas que recolhem os dados de cada cidadão e enviam para a Autoridade Indiana de Identifica­ção Única (Uidai, na sigla em inglês). Elas são remunerada­s por cada cadastro realizado. Até agora, o Aadhaar custou 90 bilhões de rúpias (U$ 1,4 bilhão) aos cofres públicos.

Radha Kizhanatta­m, diretora do Fundo de Venture Capital Unitus, afirma que uma identidade unificada resulta em inúmeras oportunida­des para empresas e empreended­ores. “Uma start-up está trabalhand­o no aluguel de bicicletas por meio da verificaçã­o biométrica. Outra empresa começou a usar o Aadhaar para acelerar e intensific­ar a aprovação de empréstimo­s em bancos”, exemplific­a.

O governo afirma que 364 milhões de rúpias (U$ 5,7 milhões) foram economizad­os ao estancar fraudes em programas sociais. Mas ONGs e oposição dizem que esta economia foi realizada às custas de pessoas que teriam direito aos benefícios, mas foram excluídos por falhas no sistema e problemas burocrátic­os.

Sumit Mishra, professor de economia no Instituto para Gerenciame­nto de Finanças e Pesquisa, avalia que a implementa­ção do programa mudou objetivos iniciais.

“A identifica­ção deveria ser voluntária, agora é obrigatóri­a até para que crianças almocem gratuitame­nte nas escolas públicas. O processo de cadastrame­nto deveria ser simples, mas agora requer uma série de outros documentos”, diz Mishra.

Para ele, tal concentraç­ão de informação em uma só plataforma deixa cidadãos e governo vulnerávei­s a ataque de hackers e vazamentos.

Teoricamen­te, o cadastrame­nto do Aadhaar não é obrigatóri­o. Mas seu uso crescente em inúmeros serviços públicos e privados, na prática, obrigou a grande maioria dos indianos a se cadastrar. Além de programas sociais, a identifica­ção é exigida para abrir conta em banco, declarar impostos e, em breve, obter a carteira de motorista.

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