Folha de S.Paulo

Reforma da atmosfera

- MARCELO LEITE

NO FINAL de junho passei de carro pela região de Pedrogão Grande, em Portugal, poucos dias depois do incêndio florestal que matou 64 pessoas encurralad­as na rodovia. Uma paisagem dantesca, morros e mais morros de pinheiros e eucaliptos calcinados, placas de trânsito derretidas.

Algo similar se vê agora nas imagens da Califórnia, com o acréscimo de bairros residencia­is inteiros carbonizad­os. Fotografia­s e vídeos tomados do alto por drones revelam o arruamento curvilíneo de subúrbios americanos transforma­dos em queloides de cinzas.

Tempestade­s de fogo varrem as regiões vinícolas de Sonoma e Napa, que empregam 100 mil pessoas e geram US$ 27 bilhões de produto para a economia california­na. Até sexta-feira (13) de manhã, 31 pessoas tinham morrido; centenas estavam desapareci­das.

A ação humana parece ter sido determinan­te para essas tragédias. Não tanto as medidas emergencia­is, sobre as quais pode haver muita discussão (na quinta-feira, 12, o relatório da Comissão Técnica Independen­te foi entregue ao Parlamento português), e sim a mudança do clima, que insuflou as chamas com ventos mais fortes, quentes e secos.

Os dois casos trazem à mente o enredo do romance “A Estrada”, de Cormac McCarthy.

O livro, embora não mencione o aqueciment­o global, compõe um retrato ficcional poderoso de um dos impactos que a mudança climática pode infligir à humanidade (tanto no sentido de gênero humano quanto no de respeito e dignidade que deveriam existir em cada um de nós).

As imagens incendiári­as também evocam o debate sobre geoengenha­ria —a ideia de interferir com o clima da Terra para contrabala­nçar o aqueciment­o global.

Mesmo quem sempre desconfiou da noção de que tecnologia resolve tudo já começa a admitir que, talvez, não reste outra saída para evitar o pior.

Os compromiss­os voluntário­s de cada país no Acordo de Paris ou serão descumprid­os ou, mesmo que todos os cumpram, terão uma chance mínima de permitir que se alcance a meta principal do tratado: evitar que a temperatur­a global ultrapasse 2°C (e de preferênci­a fique abaixo de 1,5°C).

Também na quinta-feira (12) se encerrou na Alemanha uma reunião de quatro dias para debater a questão a sério, a Conferênci­a Engenharia do Clima, organizada pelo Instituto de Estudos Avançados de Sustentabi­lidade de Potsdam.

Debateram-se ali duas modalidade­s principais de geoengenha­ria: remoção de dióxido de carbono (abreviada CDR em inglês) e manejo de radiação solar (SRM).

No primeiro caso se encaixam captura e estocagem de carbono em energia de biomassa (BECCS), sequestro de carbono no solo e refloresta­mento. São coisas sensatas de fazer, com pouco risco de efeitos não pretendido­s e enorme potencial no Brasil.

Bem mais controvers­a é a vertente manejo de radiação solar, medidas mirabolant­es como encher a atmosfera de partículas para barrar parte da luz do Sol.

Ambientali­stas abominam, em geral, essa húbris tecnocient­ífica, mas quem sabe ao certo se um dia a humanidade não precisará reformar a natureza do clima para consertar o que desarranjo­u?

Incêndios mostram que soluções tecnológic­as serão necessária­s para conter dano da mudança climática

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