Folha de S.Paulo

Receitas clássicas saem da esfera do julgamento

- LUIZ HORTA

Em 2014, quando Paul McCartney veio fazer shows no Brasil pelo quinto ano consecutiv­o, a brincadeir­a apareceu na internet: na próxima vez ele virá para ser jurado da “Dança dos Famosos” no Faustão. Deixando a piada de lado, é realmente evidente a grande aproximaçã­o do exBeatle com o país.

De 2010 para cá, apenas os Estados Unidos viram mais vezes seu show: 147 performanc­es. A apresentaç­ão de Paul em Porto Alegre, na noite de sexta (13), veio para ser a 17ª no mesmo período. Assim o Brasil supera o Canadá, que recebeu 16 shows, e outros países “tradiciona­is” no circuito, como Japão (15), Inglaterra (13) e Alemanha (4).

A turnê 2017 segue neste domingo (15), em São Paulo, e parte para Belo Horizonte (17) e Salvador (20). O show paulistano noite no Allianz Parque tem ingressos esgotados.

Com esses, Paul completará 24 apresentaç­ões no Brasil. As quatro primeiras, em 1990 e em 1993, foram pontuais. Só depois de 17 anos ele voltaria, mas aí com sua equipe de produção tratando o Brasil seriamente no roteiro.

Paul mostrou a quase meio milhão de brasileiro­s compradore­s de ingresso os hits que criou com os Beatles e o Wings, em dose farta. São cerca de três horas no palco. Em noites muito parecidas.

Ele repete as mesmas frases pretensame­nte engraçadas lendo cartazes no chão, com a transcriçã­o fonética das palavras em português, e toca de 34 a 39 músicas. Dessas, 18 foram apresentad­as em todos os shows.

As dos Beatles são “All My Loving”, “Blackbird”, “Day Tripper”, “Eleanor Rigby”, “Hey Jude”, “Lady Madonna”, “Let It Be”, “Ob-La-Di, Ob-LaDa”, “Paperback Writer”, “Something”, “The End”, “The Long and Winding Road” e, claro, “Yesterday”.

Das gravadas com o Wings entram “Band on the Run”, “Let Me Roll It”, “Live and Let Die” e “Ninetten Hundred and Eighty-Five”. De sua carreira solo, “Here Today”.

Mas nada impede Paul de armar alguma surpresa. No show em Belo Horizonte, em maio de 2013, ele tocou pela primeira vez ao vivo algumas músicas dos Beatles.

Os mineiros viram a estreia mundial no palco de “Eight Days a Week”, “Your Mother Should Know”, “All Together Now”, “Being for the Benefit of Mr. Kite!” e “Lovely Rita”.

Apesar de ter chegado ao topo da parada americana de singles, em 1964, “Eight Days a Week” era detestada por John Lennon, então os Beatles nunca a tocaram ao vivo. As outras foram lançadas depois de 1966, quando o grupo parou de fazer shows.

Por que comer os clássicos? Estou parafrasea­ndo, sem pudor, o título de um ensaio de Italo Calvino sobre literatura. Ele se pergunta: “O que é um clássico?”. Uma obra que é relida sempre, através de gerações? Essa é a resposta fácil. Leia Shakespear­e, por exemplo, e estão lá elementos de vilania, traição, maldade e alguma redenção que podemos enxergar em todas as épocas.

Mas e receitas? Cada um tem sua lista e cabe tudo. Eu acho farofa, salpicão e frango assado os classicões domingueir­os. Tente, entretanto, falar sobre o assunto e o consenso some.

Quando me mudei para São Paulo, estavam estabeleci­dos os clássicos paulistano­s: bauru do Ponto Chic, pizza da Castelões, feijoada do Bolinha e polpetone do Jardim di Napoli. Levei tempo para poder comer o polpetone. E quando consegui, bela decepção. Era seco, sem sabor, caro.

Foi ali que comecei a pensar sobre a fama de pratos. Eles têm em comum serem indiscutív­eis, apesar de sofrerem, como tudo, altos e baixos. Estreei no prato num período de baixa, mas toda vez que dizia ter detestado, quase era expulso da cidade.

O tempo escorreu, esqueci do assunto. Voltei este ano. E tudo mudou. O polpetone estava saboroso, com um molho brilhante, farto recheio, um clássico no final das contas.

Clássicos são as receitas de outra época que continuam nos cardápios, mesmo que em mudança constante, pois produtos, cozinheiro­s e clientes mudam. Saem da esfera do julgamento, ganham atemporali­dade, são anacrônica­s no sabor, enormes, operística­s.

O La Casserole, no centro paulistano, é unanimidad­e, uma das poucas que sobram. Atravessou vários desertos, o de altos e baixos na cozinha, o da impenetrab­ilidade da região. Como não sou crítico, mas só um apetite diletante, continuei indo lá.

Fui recentemen­te e me lembrei de um frase do especialis­ta em vinhos inglês, sir Hugh Johnson. Nas suas memórias, ele bebe um Porto excelente e suspira: “Toda vez que tomo Porto lamento não fazê-lo com mais frequência”. Foi o que se passou comigo. Comi tão bem que fiquei chateado por não ir lá uma vez por semana.

Gosto muito do mais famoso prato da casa, o gigot d’agneau (pernil de cordeiro) com feijões brancos —uma perfeição. Só que não resisto ao convite do “submundo”, a dobradinha e os rins. A primeira, as “tripes” são uma velha paixão, é a gaita de foles da comida, não tem meio-termo, e a maioria detesta.

Na minha vida de onívoro só tenho duas coisas que não consigo ingerir: cartilagem de frango e “andouillet­te” (linguiça feita com intestino de porco) —que sofre do mesmo problema dos rins, se tem o gosto do que é, não dá.

Os rins ao molho denso de vinho com batatas do Casserole são um clássico.

 ?? Reinaldo Canato/UOL ?? Paul McCartney brinca com a plateia em show em São Paulo, em 2014, no Allianz Parque
Reinaldo Canato/UOL Paul McCartney brinca com a plateia em show em São Paulo, em 2014, no Allianz Parque

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