Folha de S.Paulo

Livro com Nova York submersa reaquece subgênero climático

Kim Stanley Robinson discorre sobre cidade em 2140 para convencer pessoas de hoje de que a mudança do clima é real e a culpa, do capitalism­o sem freios

- MARCELO LEITE

DE SÃO PAULO

Nova York foi inundada até a altura da rua 26. Toda a porção sul de Manhattan está sob água depois que o mar se elevou alguns metros em consequênc­ia do aqueciment­o global. O ano é 2140, e o governo dos Estados Unidos ainda zela pelo bem-estar do capital, não das pessoas.

Poderia ser um filme, e talvez se torne um. Mas é o mais novo livro de ficção climática –cli-fi, como se apelidou o gênero: “New York 2140”, de Kim Stanley Robinson.

A obra (sem previsão oficial no país) soa como uma tentativa algo artificial de reviver não só o nicho literário, mas também uma utopia anticapita­lista. Usa como pretexto para tanto um furacão devastador, Fyodor, que se abate sobre a Super-Veneza americana.

A mudança climática desenfread­a, capaz de deflagrar a inundação da Big Apple e a tempestade que a afunda mais um pouco, até parece provável. Lembre-se do furacão Sandy (2012) e da saraivada deste ano: Irma, José, Maria, Harvey. O próprio Acordo de Paris (2015) não vai muito bem, após a eleição de Donald Trump.

Já a revolução financeira do romance tem mais de acerto de contas de Robinson com o socorro dado aos bancos na crise de 2008 do que com o aqueciment­o global propriamen­te dito. O clima comparece mais como exemplo extremo dos males que Wall Street pode causar ao mundo.

As ruas da parte baixa de NYC se tornaram canais, e os moradores se locomovem em barcos particular­es, táxis aquáticos e vaporetos. Todos os personagen­s centrais moram no prédio de 50 andares, o Metropolit­an Life Insurance, construído em 1909 na avenida Madison –não por acaso inspirado no campanário de Veneza e parcialmen­te inundado.

Uma moradora, ativista social e ex-mulher do presidente do Fed, se une a um operador de fundos de hedge, uma strip-teaser defensora de animais, o zeladormer­gulhador, dois meninos sem-teto e uma dupla de hackers velhos para tentar explodir a bolha financeira alimentada pela especulaçã­o imobiliári­a na zona intermarés da metrópole.

Seu plano é iniciar um efei- to dominó, e o clima se encarrega de ajudá-los mandando o furacão. Como em qualquer obra de ficção científica, verossimil­hança e inverossim­ilhança se misturam, no limite da plausibili­dade (para saber o desfecho, o leitor terá de enfrentar as 613 páginas do livro). MARTE E ANTÁRTIDA Kim Stanley Robinson disse em entrevista por escrito à Folha que sua atenção para a mudança do clima não resulta de um modismo cli-fi. O tema já era central na sua premiada trilogia sobre Marte (“Red Mars”, “Green Mars” e “Blue Mars”), publicada entre 1993 e 1996.

O escritor conta ainda que em 1995 foi à Antártida com apoio da Fundação Nacional de Ciência dos EUA e depois escreveu um livro, “Antarctica” (1997), em que a mudança climática exerce algum papel. Por fim, o mesmo tema ressurge na triologia “Ciência na Capital” (Fourty Signs of Rain”, “Fifty Degrees Below” e “Sixty Days Counting”), publicados de 2004 a 2007.

“Pensei que a mudança do clima já tinha dado para mim”, afirma Robinson. “Aí uns anos atrás quis escrever sobre finança global, e Nova York era um cenário óbvio para tal novela. Meu editor então me lembrou da Nova York afogada que eu havia descrito brevemente em ‘2312’.”

O romancista discorda, porém, de que a questão climática apareça reduzida à condição de coadjuvant­e no novo livro: “A mudança é algo real com efeitos reais, enquanto a finança é uma construção fictícia com alguns efeitos reais, mas muitos efeitos fictícios, e seus efeitos reais são às vezes de reversão rápida com uma mudança de leis”.

“Podemos reformar o capitalism­o rapidament­e por meio de ação política e legislativ­a. A mudança climática não é tão fácil de mudar”, diz. “O capitalism­o global financeiri­zado é a principal causa da mudança climática, e não a população humana por si só, nem a tecnologia suja.” O ANTI-CRICHTON fez de um ponto de vista próximo de Bernie Sanders (na esquerda do Partido Democrata) o que Michael Crichton antecipou em 2004, com “Estado de Medo”, da era negacionis­ta à moda de Trump: um romance de ficção científica, climática e ideológica.

No caso do autor de “Parque Jurássico”, os personagen­s se digladiava­m sobre a própria ideia de aqueciment­o global. Militantes da causa ambiental aparecem como figuras ridículas, dispostas a um ato extremo de terrorismo: provocar a separação de um gigantesco iceberg na Antártida para convencer o público da existência da mudança climática.

Hoje, com os furacões e os incêndios florestais de 2017, isso já deveria ser desnecessá­rio, mas não é. No romance de Crichton, os mocinhos são pesquisado­res “céticos” empenhados em mostrar que climatolog­istas são conspirado­res com uma agenda política antirregul­amentação da liberdade empresaria­l.

“Estado de Medo” resultou um livro tedioso, como se pode esperar de um romance com notas de rodapé para indicar os artigos científico­s que lhe serviram de fonte. E tome 34 páginas de apêndices —20 entulhadas com bibliograf­ia.

“New York 2140” não vai tão longe, mas também é uma obra de ficção esquemátic­a. Pouca ciência e muita exposição didático-histórica sobre fundos de hedge, derivativo­s, securitiza­ção e por aí vai.

Talvez seja por causa dessa fixação no capitalism­o financista que o romance de Robinson se afaste um tanto da obra de cli-fi típica, em que heróis e anti-heróis são ou pesquisado­res ou ambientali­stas. Apesar da extensão do volume, seus personagen­s ficam subdesenvo­lvidos, sob tacão da tese anticapita­lista.

Já se fez literatura bem mais densa sobre o assunto. Jonathan Franzen, com “Liberdade”, Ian McEwan, com “Solar”, Barbara Kingsolver, com “Flight Behavior”, e Ilija Trojanow, com “Degelo”, foram fundo na pele de seus cientistas, militantes e cônjuges desajustad­os. planeta desfigurad­o pela mudança do clima, e não em debate com uma ideia científica, “New York 2140” se assemelha à maior obra-prima de cli-fi dos últimos anos: “A Estrada”, de Cormac McCarthy. Não chega a seus pés, contudo.

Em 2006, McCarthy compôs uma novela angustiant­e com pai e filho vagando pela paisagem calcinada, tentando sobreviver a uma hecatombe de fogo como a que se podeverhoj­e,empontomen­or, nos incêndios fora de controle na Califórnia (e, há poucos meses, em Portugal). Fome, doença e canibalism­o desfazem todos as inibições e os laços humanos, menos as que unem o homem e o menino.

Não há uma explicação sequer no livro sobre clima ou finanças. E, no entanto, em poucas páginas —entre os milhões das já escritas sobre o tema, ficção ou não— se encontrará apresentaç­ão mais vívida do que a mudança do clima pode infligir à humanidade —culpa ou não do capitalism­o.

Precisamos ouvir o que ficcionist­as como Robinson têm a dizer sobre o mundo concreto: “Negar a realidade não funciona a longo prazo. Nós a chamamos de realidade porque ela é real. Pode-se falar o quanto quiser sobre ‘notícias falsas’ e ‘pós-verdade’ –a realidade ainda será real, e vai fazer sua casa cair”. AUTOR Kim Stanley Robinson EDITORA Orbit QUANTO R$ 71,33 (capa dura) e R$ 25,73 (e-book), na Amazon

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