Folha de S.Paulo

Testemunho sobre filhos, museus e o nu

- MARCIUS MELHEM COLUNISTAS DA SEMANA: segunda: Gregorio Duvivier, terça: José Simão, quarta: Reinaldo Figueiredo, quinta: José Simão, sexta: Ricardo Araújo Pereira, sábado: José Simão

FUI UMA criança sem museus. Mais que isso, fui uma criança sem o nu que os museus exibem. E posso testemunha­r o que isso causa.

Mas antes vou falar sobre duas crianças que, aos oito anos, já viram alguns museus e, neles, vários nus: Manuela e Nina, minha filhas.

Nas férias de julho as levamos ao Louvre. Era um grupo grande de crianças, com uma guia brasileira radicada na França e especializ­ada em explicar arte a pequenos.

Lá, meninos e meninas viram muitas representa­ções do nu. Aprenderam sobre as diferentes visões do corpo humano, observaram esculturas e telas, arte grega e romana, enfim... um banho de cultura.

Nas três horas de passeio nenhuma das quase 20 crianças fez qualquer piadinha erótica ou qualquer menção ao corpo que não estivesse no contexto da arte. Elas queriam mesmo entender como o corpo era visto e representa­do. A única coisa que chocou as crianças foi a perfeição das esculturas, como a “Psiquê revivida pelo beijo de amor”, de Antonio Canova, que fez com que elas dessem voltas e voltas em torno da obra pra ver todos os detalhes.

O que se viu naquela manhã foram menores em um ambiente de arte, monitorada­s por seus pais, enriquecen­do seu universo, aprendendo cultura e história ao mesmo tempo.

O nu estava naturaliza­do, olhado com interesse artístico, e foi lindo ver a reação delas.

Voltando à criança que não teve acesso a museus, posso dizer em contrapont­o o que isso me causou. Lá nos anos 1980 aprendi o que era o nu feminino nas páginas da “Playboy”, nos filmes da Sala Especial, nas revistas de historinha­s e fitas VHS que nós trocávamos escondidos dos pais.

Aprendi sobre o corpo humano da forma mais erótica e grosseira —sem beleza, sem arte, olhando a mulher como um objeto do prazer alheio. Demorei a combater isso em mim e ainda hoje estou atento às sequelas dessa pré-adolescênc­ia onde o nu era proibido, escondido, não natural.

Querer proibir o acesso ao nu artístico com a desculpa de proteger crianças, além de desleal, é burro. Esta visão diz muito sobre quem a tem.

Talvez essas pessoas sejam o adolescent­e que eu fui, mas sem se recuperar a tempo. Não à toa entre os arautos da moralidade está um deputado que foi flagrado vendo vídeos pornôs no meio do plenário em 2015.

Lógico que a criança não pode ter acesso a tudo. E como pai estou atento. Ultimament­e, por exemplo, tenho procurado restringir o acesso das minhas filhas ao conteúdo da TV Câmara e da TV Senado.

Aprendi sobre o corpo humano da forma mais erótica e grosseira; sem beleza, sem arte

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Débora Gonzales

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