Folha de S.Paulo

Os homens invisíveis

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RIO DE JANEIRO - Romance hiperreali­sta, “Não Adianta Morrer” (Estação Liberdade) tem, no entanto, algumas cenas de terror que lembram episódios da série “Além da Imaginação”: o taxista Pedrão chega ao aeroporto do Galeão e o encontra deserto. Ninguém nos guichês, ninguém nas lojas, nenhuma voz nos alto-falantes, a pista com aviões imóveis e o céu uma imensa nuvem de urubus: “Deixa de ser burro, uma voz disse dentro da minha cabeça, você não percebe que a cidade está morta, vacilão?”.

No mesmo dia em que terminei de ler o livro de Francisco Maciel —cujo lançamento será nesta quarta, na Travessa de Botafogo – a Folha publicou um índice do Unicef segundo o qual a letalidade de jovens alcançou a maior taxa no país desde 2005: quatro em cada mil adolescent­es serão mortos antes de atingir os 19 anos.

Há ligação entre notícia e romance. Com sua prosa nervosa, repleta de gírias, no fio da navalha entre ver- dade e ficção, o autor consegue algo raro: humanizar os frios números da barbárie. Logo no primeiro relato —o romance é feito de fragmentos de histórias— lê-se: “Dafé está correndo pela Maia Lacerda às duas e quinze da tarde, e vai morrer às duas e vinte e dois. Alto, olhos verdes, funkeiro pixaim louro oxigenado, ele podia ter sido o que quisesse na vida. (...) Mas escolheu a parada errada”.

Passada no Estácio, o bairro que viu nascer o samba moderno no fim dos anos 1920, a obra nada tem de autorrefer­ente. Está na contramão da literatura produzida atualmente no Brasil. Os personagen­s —Guile Xangô, Vavau, Beleco, as Comadres, os Quatro Mandelas— existem além do próprio umbigo. Mas são homens invisíveis, para lembrar o título do romance clássico de Ralph Ellison. Aqueles a quem as pessoas se recusam a ver.

Da mesma forma que ficamos, a cada dia, mais insensívei­s às estatístic­as de morte violenta. NABIL BONDUKI

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