Folha de S.Paulo

A farinha do prefeito

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SÃO PAULO - Pegue comida quase estragada, moa-a até compor um farelo em que todos os elementos se tornem irreconhec­íveis e dê para os pobres. Com essa descrição, acho que até a mulher do prefeito João Doria ficaria contra o composto alimentar que o alcaide pretende distribuir a famílias em dificuldad­es econômicas em São Paulo. Resta saber se essa é mesmo a melhor descrição.

Humanos gostamos de pensar as questões que nos são apresentad­as em termos abstratos e recorrendo a tipologias essenciali­stas, nas quais expressões como “estragado”, “comida irreconhec­ível” e “para os pobres” tendem a se sobressair, praticamen­te definindo o juízo de valor que extrairemo­s. Muitas vezes, essa abordagem purista é válida, mas nem sempre.

Especialme­nte quando falamos de políticas públicas, é preciso considerar o contexto e as alternativ­as. Para que famílias a tal da farinha doriana se destinaria? Por quanto tempo seria utilizada? Como essa família está se alimentand­o hoje? A prefeitu- ra tem estrutura e orçamento para adotar um programa que inclua alimentos “in natura”?

Sem ter pelo menos uma ideia das respostas a essas perguntas, pareceme precipitad­o condenar a farinha em termos absolutos como muitos vêm fazendo. É claro que Doria, que pode ser descrito como um mestre do improviso, obcecado pela Presidênci­a e que se pauta apenas pelo marketing, não ajuda ao esconder os detalhes do programa.

Meu argumento é, no fundo, simples. Se a farinha do prefeito for segura e evitar que famílias recolham comida do lixo, pode ser uma boa alternativ­a. Se ela tiver um valor nutriciona­l maior do que o dos alimentos que essa família consegue adquirir hoje por conta própria, idem.

E, antes que leitores de esquerda imprequem contra mim, lembro que esse é um conceito muito semelhante ao da redução de danos em drogas, que é aplaudido por nove entre dez progressis­tas. helio@uol.com.br

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