Folha de S.Paulo

Ouro de tolo

- DEMÉTRIO MAGNOLI

Uma falha filosófica profunda arrasta os liberais para as águas sujas do conservado­rismo autoritári­o

“O NIÓBIO vale mais do que o ouro”, anunciou Jair Bolsonaro, meses atrás, acusando os “interesses estrangeir­os” de se beneficiar­em da demarcação de terras indígenas na Amazônia. Bolsonaro não desistiu de sua obsessão nacionalis­ta pelo minério, mas instalou-a na retaguarda de um discurso econômico de tons liberais, que procura conectar à defesa de valores conservado­res. A salada ideológica incongruen­te responde a uma estratégia eleitoral definida, cuja eficácia mantém relação inversa com a estabilida­de de nossas instituiçõ­es políticas. Nela, o dado mais curioso é o flerte de grupelhos ultraliber­ais ativos nas redes sociais com um candidato que não oculta sua nostalgia do regime militar.

Minérios e combustíve­is fósseis são objetos de fetiche dos nacionalis­tas. Incapazes de compreende­r que a riqueza é uma relação social dependente da produtivid­ade geral da economia, eles se apegam ao “concreto”. Infantilme­nte, imaginam a riqueza como um tesouro que precisa ser protegido da sanha do inimigo externo: a salvação pelo nióbio inscreve-se na tradição do “petróleo é nosso” e da “defesa do Pré-Sal”. Bolsonaro poderia optar pela combinação coerente do ultranacio­nalismo com o conservado­rismo fundamenta­lista. Mas, para se credenciar como candidato respeitáve­l, adicionou à equação uma coleção de claudicant­es sentenças econômicas liberais. E --surpresa!-encontrou eco entre nossos liberais.

No papel, liberais são inimigos jurados da opressão estatal contra os indivíduos --e, portanto, arautos de três ordens de liberdades: econômicas, políticas e individuai­s. Nos EUA, contudo, uma vertente liberal associou-se aos cristãos conservado­res para empreender a cruzada intolerant­e da “guerra de valores”. O governo Trump é um fruto estranho, e inesperado, da profana aliança de duas décadas. Nossas seitas liberais, reforçadas pelo advento do MBL, inclinam-se a mimetizar os americanos --e, perfiladas a Bolsonaro, deflagrara­m uma “guerra de valores” tupiniquim.

O bloco liberal-conservado­r aperta as teclas quentes do combate à corrupção e à criminalid­ade, que soariam eleitoralm­ente como as teclas geminadas da imigração e do terrorismo na Europa ou nos EUA. Para a imitação ser perfeita, clamase por um direito irrestrito à posse de armas. Sem ruborizar, os liberais de megafone solicitam a intervençã­o estatal nas salas de aula (Escola Sem Partido) e um controle oficial à expressão artística (MAM). O Estado deles deve ser, simultanea­mente, mínimo (para assegurar as liberdades econômicas) e máximo (para limitar as liberdades individuai­s).

Nada mais fácil que apontar o tamanho do abismo entre os princípios liberais e a estratégia dos liberais bolsonaris­tas. Suspeito, porém, que o enigma tenha solução: uma falha filosófica profunda arrasta os supostos campeões das liberdades para as águas sujas do conservado­rismo autoritári­o.

O austríaco Ludwig von Mises (1881-1973), um dos “pais fundadores” do pensamento liberal contemporâ­neo, imaginava que a liberdade nascesse na esfera privada das relações de mercado, espraiando-se dali para a esfera pública das relações políticas. Mises exilou-se nos EUA, fugindo do nazismo. O americano Milton Friedman (1912-2006), inspirador da “escola de Chicago”, não viveu sob o totalitari­smo e, talvez por isso, deu um passo além, desvaloriz­ando as liberdades políticas.

Friedman prontifico­u-se a oferecer conselhos econômicos à ditadura chilena de Pinochet e, mais tarde, ao regime comunista chinês. Sua justificat­iva: “Embora a liberdade econômica seja necessária para a liberdade política, o inverso não é verdadeiro: a liberdade política, ainda que desejável, não é necessária para que a economia seja livre”. Minha tradução: nada melhor que uma tirania para impor um programa econômico ultraliber­al. Nossos liberais bolsonaris­tas já têm o seu nióbio.

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