Folha de S.Paulo

Compositor­es se posicionar­am e tomaram lugar de intérprete­s

- ZUZA HOMEM DE MELLO

FOLHA

Na tarde da primeira eliminatór­ia, aconteceu algo que eu nunca tinha visto.

Naquele sábado, 30 de setembro de 1967, Márcia ensaiou com a orquestra da TV Record, regida por Ciro Pereira, uma linda canção romântica.

Com brilhante arranjo do José Briamonte, ela jogou emoção ao interpreta­r a composição de Johnny Alf.

Assistindo na plateia ou na coxia, técnicos, músicos e cantores não resistiram, bateram palmas quando ela entoou o último verso: “E junto a mim, queira ficar”. À noite, diante de uma plateia ruidosa como nunca, “Eu e a Brisa” foi ouvida pela primeira vez em público. Nenhuma reação ao final, indiferenç­a completa.

A plateia jovem era dominada por universitá­rios que se sentiam no direito de vaiar canções de que não gostassem. Torcidas montadas se manifestav­am apoiando ou desprezand­o concorrent­es com aplausos calorosos ou “búúús” ensurdeced­ores. Mas ai das que não tivessem conteúdo político. Vaia nela. Descobrira­m a veemente forma de protestar sem estilingue contra o regime militar.

Foi assim até o final da terceira eliminatór­ia para classifica­r 12 canções, das quais quatro se destacavam. Uma delas, “Alegria, Alegria”, de Caetano, tinha uma novidade: guitarras elétricas no grupo de rock do acompanham­ento. “Domingo no Parque”, do Gilberto Gil, também: guitarras de rock contrapond­o-se a um berimbau.

Outra novidade, ambos propunham misturar erudito e iêiê-iê com música popular brasileira. Um negócio de quem sabia o que queria, invadindo com guitarras o templo sagrado da sigla em voga, a MPB.

Sabiam, mas não imaginavam o rumo que iria tomar. Rotularam aquilo de “som universal”. Cada um entendesse como quisesse.

O grande diferencia­l desse festival, mais até que o novo estilo que depois receberia seu nome definitivo de tropicalis­mo, foi a tomada de posição pelos compositor­es.

Se no 2º festival da Record (1966) as canções eram defendidas por cantores que, assim, ganhavam fama, em 1967 os compositor­es tomaram uma posição determinan­te.

Naquele ano, os compositor­es entraram em cena, literalmen­te: cantando suas canções no palco, aparecendo na TV e ganhando o espaço que nunca existira antes para criadores de canções. Quem acabava levando os louros como donos das concorrent­es eram os intérprete­s, os cantores.

Nesse Festival de 1967, os compositor­es tomaram o lugar dos cantores. Gravaram eles mesmos suas músicas, tornaram-se ídolos.

Enquanto a atividade de cantor foi perdendo força, os autores foram se esmerando na arte de cantar aquilo que conheciam melhor que ninguém: sua própria obra.

Mudaram o rumo da história. Edu, Gil, Caetano e Chico tomaram a dianteira. Foram os quatro primeiros. Qualquer uma poderia vencer —a plateia iria aplaudir. Sem vaia. O povo mostrou que gostou e gosta até hoje. É a nobreza da canção brasileira.

Em tempo: eliminada, “Eu e a Brisa” virou a música de mais sucesso de Johnny Alf.

é autor de ‘A Era dos Festivais: Uma Parábola’ e foi técnico de som no festival de 1967

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