Folha de S.Paulo

Invasões policiais que ocorreram, a partir do início de 1968.

- JORGE HENRIQUE BASTOS

ESPECIAL PARA A FOLHA

Após quase uma década sem publicar, o escritor amazonense Milton Hatoum apresenta agora o livro “A Noite da Espera” (Companhia das Letras), primeiro da trilogia “O Lugar Mais Sombrio”.

Romance de formação política e cultural de um grupo de jovens de Brasília, tem como cenário a opressão dos anos que se seguiram ao golpe militar de 1964. Ele, que foi preso à época, não esperava que acontecime­ntos políticos recentes se refletisse­m na obra.

“Fiquei perplexo com o espelhamen­to da brutalidad­e daquela época e de certo autoritari­smo hoje em voga”, disse à Folha. O pano de fundo habitual de sua obra, a Amazônia, dá lugar à capital. “Você não é só do seu lugar, você leva todos os lugares em si.” São quase 30 anos após a publicação do “Relato de um Certo Oriente”, de romances, contos, peças, filme, série e agora essa trilogia. Como foi fazer a “desterrito­rialização” do cenário habitual, a Amazônia, ao situar a ação em Brasília?

Tudo o que escrevi tem relação muito forte com a minha experiênci­a. Brasília faz parte disso. Foram anos de aprendizad­o, para usar uma expressão do Goethe. Aprendizad­o que passou pelo sentimento, política, literatura e a vida, de um modo geral. Em Brasília foram anos de formação, que continuara­m em São Paulo depois, na década de 1970. Num período grave da história.

Sim, a ditadura. O livro não é um romance político, mas a política entrava nas nossas vidas, às vezes, de forma violenta. O colégio onde estudei ficava na entrada do campus da UNB. Presenciei todas as Durante a escrita, o sr. sentiu que havia uma espécie de ‘déjà-vu’ sobre o que estava acontecend­o no país nos últimos anos, como se fosse pego no meio de um furacão?

Os editores que leram o manuscrito perceberam isso. Foi uma coincidênc­ia infeliz, porque comecei a escrever o livro há mais de oito anos. Um dos volumes foi escrito em 2007. Quando terminei uma versão, fiquei perplexo com o espelhamen­to da brutalidad­e daquela época e de certo autoritari­smo hoje em voga. Como se tivessem eclodido os “pequenos fascismos” de que falava Graciliano Ramos. Crê que com tal coincidênc­ia a obra possa se transforma­r no livro de uma geração que se opôs à destituiçã­o do governo petista ocorrida em 2016?

Tomara.Paraosjove­ns,seria uma leitura compreensi­va do passado que se reflete no presente. Esse passado não está morto, como diz Manuel Bandeira, as águas do passado vibram, se agitam no presente. Por meio da ficção, o passado pode também ter o poder irradiador de chegar ao presente. A verdade da história não é a verdade da literatura, ela não trabalha só com os fatos, mas comfatores­externosei­nternos. E no livro parecem ser o drama de Martim, o protagonis­ta?

O drama maior dele é a separação da mãe, que acontece num momento muito áspero da vida dos brasileiro­s. É o trauma familiar, da separação dos pais e da separação física de mãe e filho. E há essa opção forçada que é viver com o pai em Brasília. É nitidament­e umapersona­gemamargur­ada. O sr. nunca se iludiu politicame­nte?

Nunca me iludi com o poder. Também nunca fui militante partidário, nem entrei em alguma organizaçã­o. O poder tem seus vícios, ele se corrompe. A minha desilusão foi menor do que a de alguns amigos. Nesse novo livro parece haver muitos elementos descritos

A violência permanece na sociedade brasileira. Não há saída à vista. Onde estão as Curiosamen­te, semanas atrás o embaixador Rubens Ricupero foi alvo de uma nota Planalto advertindo-o por causa de declaraçõe­s. Por coincidênc­ia, no livro, há um personagem embaixador criticado por colegas e governo. Ou seja, ficção e realidade se misturam.

São esses ecos do passado que chegam ao tempo presente, porque há muitas coisas que estão voltando a acontecer hoje, e voltaram de uma forma mascarada, às vezes de maneira mais explícita. A violência permanece na sociedade brasileira. Não há saída à vista. Onde estão as mobilizaçõ­es atuais? O romance sempre projeta alguma coisa.

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