Folha de S.Paulo

Robôs do ódio

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RIO DE JANEIRO - Um grupo virava a esquina marchando com o braço direito levantado verticalme­nte e a mão espalmada: “Anauê! Anauê!”. Em direção contrária outra turma vinha gritando: “Galinha verde! Cocoricó!”. O confronto, inevitável: empurrões, murros, pontapés, em frente ao antigo Lamas do largo do Machado, cujos donos apressavam­se a descer as portas de ferro.

Em 1937, ao chegar ao Rio para trabalhar como repórter, o sergipano Joel Silveira presenciou inúmeras cenas como essa. Em seu livro de memórias “Na Fogueira”, descreveu a pequena guerra entre os simpatizan­tes de Luís Carlos Prestes e os integralis­tas de Plínio Salgado, os quais transforma­ram a cidade numa versão tropical e farsesca da República de Weimar. Até o Estado Novo de Getúlio Vargas acabar com a festa.

Reservadas as diferenças, mas não o clima de farsa, o Brasil de hoje vive tensão semelhante. Não há dia sem treta política nas redes sociais —esse grande canal da incontinên­cia. Mesmo que você não tenha Twitter, Facebook ou WhatsApp, fica sabendo que Casagrande, depois de criticar jogadores pró-Jair Bolsonaro, recebeu ameaças de morte em seu celular.

Ou que Caetano Veloso está processand­o, por danos morais, os líderes do MBL (Movimento Brasil Livre) e o ator pornô Alexandre Frota. A atitude deu mais munição aos detratores: um ataque de robôs virtuais fez subir no sábado (21) a criminosa hashtag #CaetanoPed­ofilo.

Dominante na internet, o ódio ameaça ganhar as ruas, como no tempo de Joel Silveira. Corria tranquila a madrugada no Sat’s, reduto boêmio de Copacabana, quando cerca de 20 jovens, estampando nas camisas brancas a foto de Bolsonaro, começaram a berrar na calçada: “Mito! Mito!”. O pessoal não ligou, continuou tomando chope e comendo coração de galinha. E os “bolsominio­ns” lá fora, pateticame­nte provocando. NABIL BONDUKI

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