Folha de S.Paulo

Viúva de soldado critica frieza de Trump

Relato de Myeshia Johnson, cujo marido morreu no Níger, alimenta polêmica com tratamento de famílias militares

- SILAS MARTÍ

Em país onde militares são vistos como heróis, presidente­s costumam telefonar a parentes de mortos para os pêsames

“Ele me fez chorar ainda mais. Tive raiva de seu tom de voz. Ele não conseguia se lembrar do nome do meu marido. Ouvi-o gaguejar ao tentar dizer o nome. Isso foi o que machucou mais”, disse a viúva do sargento La David Johnson, sobre o telefonema de condolênci­as que recebeu do presidente Donald Trump.

“Ele deu a sua vida pelo país, e você não é capaz nem de se lembrar do seu nome?”

Em entrevista à rede ABC, Myeshia Johnson, que perdeu o marido num ataque do Estado Islâmico a forças locais e dos Estados Unidos no Níger há três semanas, deu novo fôlego a mais uma polêmica que abala a Casa Branca.

Logo depois que a entrevista foi ao ar, na manhã desta segunda (23), na primeira manifestaç­ão pública da viúva desde a confirmaçã­o da morte dos militares, Trump reagiu às acusações num tuíte. “Eu tive uma conversa respeitosa com a viúva do sargento La David Johnson e falei seu nome desde o início, sem hesitação”, disse o presidente.

Sua versão, no entanto, contrasta com outros relatos.

No carro com a viúva quando Trump fez a ligação, a deputada Frederica Wilson, uma democrata da Flórida, ouviu a conversa e disparou, na semana passada, a mais nova onda de críticas ao presidente ao revelar detalhes de seu discurso. Trump teria dito a Myeshia que o soldado “sabia no que se alistara, mas quando isso acontece, dói”.

Wilson criticou o presidente por faltar com respeito à família da vítima e disse que a emboscada no Níger seria o “Benghazi de Trump”, alusão ao ataque na cidade líbia que matou quatro funcionári­os diplomátic­os dos EUA, inclusive um embaixador, em 2012.

O presidente rebateu a congressis­ta, a quem chamou de “maluca”, numa série de tuítes ao longo dos últimos dias, dizendo que ela havia inventado o diálogo e que ouviu a conversa “muito pessoal” sem autorizaçã­o.

Myeshia Johnson afirmou, no entanto, que o relato da deputada estava “100% correto” e que não haveria motivos para que inventasse­m uma outra versão dos fatos.

O episódio tem um peso ainda maior pelo fato de La David Johnson ser o único negro entre os quatro militares mortos —não houve questionam­entos sobre a conversa do presidente com parentes de outras vítimas do ataque.

A viúva, grávida de seis meses do terceiro filho do casal, pediu detalhes do governo sobre as circunstân­cias da morte. O corpo do sargento foi achado horas depois a mais de um quilômetro dos demais, sublinhand­o uma série de dúvidas sobre a ação no Níger, onde há agora mil militares americanos.

“Quando vieram à minha casa, só disseram que houve uma troca de tiros e que ele morreu”, disse Myeshia. “Toda vez que pedi para ver meu marido, diziam que eu não poderia ver o corpo. Não me deixaram ver. Não sei o que está dentro daquela caixa.” LIGAÇÕES ÀS PRESSAS Outra questão levantada é que a gafe mais recente de Trump vem no rastro de uma crítica que ele fez a Obama e outros presidente­s numa entrevista na semana passada, quando disse que ele havia ligado para as famílias de “praticamen­te” todos os mortos em combate desde a posse.

Sua afirmação foi logo desmentida por uma reportagem do site Roll Call, segundo a qual logo depois da entrevista assessores da Casa Branca pediram uma lista de mortos neste ano e contatos de suas famílias às Forças Armadas.

Desde o início da polêmica entre Trump e as famílias militares, a equipe do presidente tem feito tentativas de conter os estragos, entre elas um discurso emocionado de seu chefe de gabinete, John Kelly, que defendeu o teor de sua fala e contou que havia aconselhad­o o republican­o.

Kelly, que é general da reserva, perdeu um filho em combate no Afeganistã­o e pareceu, no primeiro momento, reverter os danos do episódio.

Mas o fim de semana reacendeu a controvérs­ia com uma entrevista de John McCain, senador republican­o veterano da Guerra do Vietnã, que criticou o fato de os ricos nos EUA nunca irem à guerra, às vezes por motivos banais de saúde, numa alusão a como Trump evitou o Vietnã quando jovem.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil