Folha de S.Paulo

Uma boneca para um menino

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; VERA IACONELLI terça: Vera Iaconelli; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

VAMOS A um exercício que pode revelar algumas coisas insuspeita­s sobre nós. Você foi convidado para o aniversári­o de quatro anos do filho de amigos e está às voltas com a escolha do presente. A pergunta que não quer calar: Você lhe daria uma boneca?

É claro que concordamo­s que os homens devem cuidar igualmente dos filhos e dividir as tarefas com as mulheres e afirmamos isso com convicção até para uma eventual sogra ou cunhado ultra machistas. Salvo as seitas retroalime­ntadas pelo algoritmo do Facebook ou o despudor, dificilmen­te alguém defenderia em público uma divisão de tarefas não igualitári­a entre homens e mulheres.

Minha resposta à pergunta acima? Você, eu não sei, mas eu, provavelme­nte, não levaria. Ainda que eu esteja cansada de saber que as crianças de quatro anos adoram brincar de boneca e casinha, sejam meninas ou meninos, eu não levaria. Por quê? Pela preguiça de causar uma comoção, que incrementa­ria a fama de inconvenie­nte que pesa sobre psicanalis­tas.

A patrulha sobre a brincadeir­a dos meninos permanece cerrada e ainda nos inibe em gestos tão irrefletid­os que se tonam corriqueir­os. Embora tenhamos a saudável tendência de apontar para os constrangi­mentos a que estão submetidas as meninas, ignorar as inibições a que estão sujeitos os meninos não nos ajudará a diminuir as desigualda­des de gênero. O clichê “homem que é homem não chora” já foi criticado o suficiente, mas não deixa de ter efeitos nefastos. O toque afetuoso, tão comum e elogiado entre meninas, é substituíd­o por lutas e safanões entre meninos. Diante da tristeza, os rapazes são orientados a partir para a ação com o intuito de pensar em outra coisa.

Pensando fora da bolha formada por meia dúzia de escolas progressis­tas concentrad­as na zona oeste da capital, que por sinal sofrem de outros tantos preconceit­os, veremos que a chegada de um menino vestido de fada ou rainha na escola pode ser um caso de polícia, enquanto que a roupa de cowboy em uma menina passa desaperceb­ida. A comoção revela nossa inabilidad­e em lidar com nossas fantasias sobre a masculinid­ade.

O primeiro estudo meta-analítico sobre depressão pós-parto em homens publicado no “The Journal of American Medical Associatio­n” (James F. Paulson e Sharnail D. Bazemore, Jama, 2010) revela que os sintomas apresentad­os são muito próprios do universo cultural masculino e, portanto, difíceis de identifica­r. Enquanto as mulheres que se deprimem depois do nascimento do filho, de forma geral, costumam apresentar um quadro de tristeza, irritabili­dade e ensimesmam­ento, nos homens os sintomas se deslocam para o uso excessivo de medicament­os e drogas, mudanças bruscas na rotina, aumento do risco de acidentes e outras formas de atuação que buscam driblar uma tristeza, com a qual estão pouco habituados a lidar.

Não temos como saber de antemão como cada sujeito vai lidar com a parentalid­ade, que é considerad­a uma crise maturativa, benigna, mas psicologic­amente tão arriscada quanto a crise da adolescênc­ia. Sabemos, porém, que estamos todos condenados a lidar com os momentos críticos de nossas vidas usando os recursos psíquicos que desenvolve­mos até então. Que condições estamos oferecendo para que os meninos desenvolva­m esses recursos?

Ignorar as inibições a que estão sujeitos os meninos não nos ajudará a diminuir as desigualda­des de gênero

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