Qual é o seu corpo?
A QUESTÃO pode parecer até mesmo esotérica —como assim, “qual” é o seu corpo?— mas, em tempos de videogames e realidade virtual, ela merece uma segunda chance.
Um espelho já deveria ser problemático: em uma sala de dança com vários alunos, como você sabe qual reflexo é o seu? E na mais simples das situações, quando você olha para baixo: o que diz que o seu corpo é seu, além do fato de ser o que parece preso ao seu pescoço?
Alguns neurocientistas vem atuando nessas questões, que parecem esdrúxulas mas estão na base da nossa autoconsciência. As ferramentas são inusitadas: braços realistas de borracha que podem se passar pelo seu, avatares de videogame, visores de realidade virtual e até manequins.
Os achados são ainda mais bizarros. Transferir o corpo para um avatar na tela do videogame já é tão lugar-comum que nem merece mais comentários. Um braço de borracha pode passar a ser “seu” se, posicionado do lado certo do corpo, for pincelado sob o seu nariz enquanto o seu braço de verdade, oculto, é pincelado ao mesmo tempo, em sincronia. A sensação de propriedade pode ser tão forte que ameaças de marteladas no braço falso, uma vez literalmente incorporado, provocam resposta do cérebro como se fosse real.
Com óculos de realidade virtual que mostram a perspectiva do abdômen de um manequim sendo acariciado por um cotonete enquanto outro acaricia sua barriga real, o manequim passa a ser seu corpo.
As “bruxarias” são cortesia do cérebro, que, claro, nunca tem 100% de certeza do corpo que habita e, em vez disso, aceita a cada instante aquele que lhe parece mais provável.
Segundo teorias modernas, o corpo que mais provavelmente é seu é aquele que o cérebro prediz: o corpo que se mexe quando o cérebro comanda e que recebe os sinais mais coerentes dos vários sentidos ao mesmo tempo. Donde vem a facilidade de “hackear” o sistema e convencer alguém a transferir sua realidade para outro corpo.
Muito do que hoje acontece nos laboratórios antes só aparecia na ficção científica. Ganham os pilotos de sondas remotas e perigosas, ganha nossa autocompreensão.
Os sinais que o corpo usa para casar consigo mesmo vêm de dentro. Uma equipe no Reino Unido descobriu recentemente que a percepção dos batimentos cardíacos influencia a identificação: seu corpo é aquele cujo coração bate junto com o seu.
Batimentos cardíacos ajudam cérebro a decidir a qual corpo pertence —não basta só olhar para baixo
SUZANA HERCULANO-HOUZEL suzanahh@gmail.com