Folha de S.Paulo

Qual é o seu corpo?

- SUZANA HERCULANO-HOUZEL

A QUESTÃO pode parecer até mesmo esotérica —como assim, “qual” é o seu corpo?— mas, em tempos de videogames e realidade virtual, ela merece uma segunda chance.

Um espelho já deveria ser problemáti­co: em uma sala de dança com vários alunos, como você sabe qual reflexo é o seu? E na mais simples das situações, quando você olha para baixo: o que diz que o seu corpo é seu, além do fato de ser o que parece preso ao seu pescoço?

Alguns neurocient­istas vem atuando nessas questões, que parecem esdrúxulas mas estão na base da nossa autoconsci­ência. As ferramenta­s são inusitadas: braços realistas de borracha que podem se passar pelo seu, avatares de videogame, visores de realidade virtual e até manequins.

Os achados são ainda mais bizarros. Transferir o corpo para um avatar na tela do videogame já é tão lugar-comum que nem merece mais comentário­s. Um braço de borracha pode passar a ser “seu” se, posicionad­o do lado certo do corpo, for pincelado sob o seu nariz enquanto o seu braço de verdade, oculto, é pincelado ao mesmo tempo, em sincronia. A sensação de propriedad­e pode ser tão forte que ameaças de marteladas no braço falso, uma vez literalmen­te incorporad­o, provocam resposta do cérebro como se fosse real.

Com óculos de realidade virtual que mostram a perspectiv­a do abdômen de um manequim sendo acariciado por um cotonete enquanto outro acaricia sua barriga real, o manequim passa a ser seu corpo.

As “bruxarias” são cortesia do cérebro, que, claro, nunca tem 100% de certeza do corpo que habita e, em vez disso, aceita a cada instante aquele que lhe parece mais provável.

Segundo teorias modernas, o corpo que mais provavelme­nte é seu é aquele que o cérebro prediz: o corpo que se mexe quando o cérebro comanda e que recebe os sinais mais coerentes dos vários sentidos ao mesmo tempo. Donde vem a facilidade de “hackear” o sistema e convencer alguém a transferir sua realidade para outro corpo.

Muito do que hoje acontece nos laboratóri­os antes só aparecia na ficção científica. Ganham os pilotos de sondas remotas e perigosas, ganha nossa autocompre­ensão.

Os sinais que o corpo usa para casar consigo mesmo vêm de dentro. Uma equipe no Reino Unido descobriu recentemen­te que a percepção dos batimentos cardíacos influencia a identifica­ção: seu corpo é aquele cujo coração bate junto com o seu.

Batimentos cardíacos ajudam cérebro a decidir a qual corpo pertence —não basta só olhar para baixo

SUZANA HERCULANO-HOUZEL suzanahh@gmail.com

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