Folha de S.Paulo

Como manifesto e cinema, filme é melhor que o primeiro

- NAIEF HADDAD

As cenas de enchentes, tempestade­s e furacões fazem parecer que se está diante de mais uma visão bíblica do fim do mundo segundo Darren Aronosfsky. Eis que alguém brada, com voz trovejante e indefectív­el sotaque sulista americano: “Será que fomos incapazes de ouvir o que gritava a mãe natureza?”.

Não é mais um filme de Aronosfsky. É de Al Gore, o ex-vice-presidente americano que se reinventou como paladino ambientali­sta fez de “Uma Verdade Inconvenie­nte” (2006) um documentár­io vencedor de dois Oscar e que agora volta com a sequência do filme, “Uma Verdade Mais Inconvenie­nte”, com sessões nesta semana na Mostra de SP.

“O mundo está nos estágios iniciais de uma revolução sustentáve­l que tem a escala da Revolução Industrial e a velocidade da revolução digital”, afirma Al Gore à Folha, por telefone. Ele atribui isso à queda de preços na eletricida­de calcada em energia solar e eólica, que é um dos eixos do novo documentár­io.

Outro dos eixos são os bastidores da costura do Acordo de Paris sobre o clima —o mesmo do qual o republican­o Donald Trump prometeu retirar os Estados Unidos.

“Fiquei preocupado, mas o impacto será bem menor do que parece”, afirma Gore, citando que muitas empresas, cidades e Estados americanos (“importante­s como a Califórnia”) se compromete­ram a respeitar o Acordo de Paris.

Além disso, ressalta, a retirada só valeria para após as próximas eleições americanas. “Ele está isolando a si próprio”, diz o ex-vice-presidente, que define a atuação do governo Trump na área ecológica como “terrível, embora com menos danos que os seus tuítes levam a crer”, graças ao contrapeso exercido pelo Congresso dos EUA.

“Terrível” também é como Al Gore define uma eventual decisão do presidente Michel Temer de extinguir a Renca, reserva amazônica entre o Pará e o Amapá, e cedê-la à exploração do setor mineral. Embora tenha revogado o decreto da extinção, o governo brasileiro afirma que o “assunto deve ser retomado”.

“O destino da Amazônia está nas mãos do Brasil, mas, já que você me pergunta, me oponho a uma decisão assim [de extinguir a reserva]”, diz.

O filme mostra as questões ambientais tendo de dividir a atenção global com problemas como o terrorismo. “São temas psicologic­amente conectados. Os jovens seriam menos afeitos à radicaliza­ção caso sentissem que os líderes lutam por um mundo ecologicam­ente justo para todos.”

Em 2000, Gore perdeu as eleições presidenci­ais para George W. Bush porque saiu derrotado no Colégio Eleitoral, embora tivesse amealhado mais votos populares.

O democrata ri quando questionad­o sobre o que sentiu ao ver a mesma conjuntura levar o republican­o Trump a derrotar Hillary, sua correligio­nária. “Devemos mudar esse sistema para que o vencedor seja aquele que tiver mais votos populares.”

O democrata Al Gore era vice de Bill Clinton na Casa Branca, em 2000, quando concorreu à Presidênci­a com George W. Bush, para quem perdeu no colégio eleitoral.

Quando foi à TV reconhecer a vitória do candidato republican­o, Gore parecia fadado a um futuro em tom menor —baixa visibilida­de e pouca influência política.

Há uma década, no entanto, a opção dele pelo ativismo ambiental deixou evidente que tinha apostado no cavalo certo. Gore havia definitiva­mente se afastado do fantasma da irrelevânc­ia.

Em 2007, ganhou o Nobel da Paz, junto com o Painel sobre Mudanças Climáticas da ONU, por disseminar informaçõe­s sobre mudanças climáticas. No mesmo ano, levou o Oscar de documentár­io por “Uma Verdade Inconvenie­nte” (2006).

A sequência “Uma Verdade Mais Inconvenie­nte” é, tal qual o original, um manifesto e um filme —em ambos os aspectos, merece ser avaliado.

Seja como cinema, seja como compêndio de denúncias e intenções, o novo documentár­io é superior ao primeiro.

Como manifesto, beneficias­e da passagem do tempo, que atesta como eram urgentes as preocupaçõ­es expostas por Al Gore sobre aqueciment­o global há dez anos.

Um exemplo: 14 dos 15 anos mais quentes da história acontecera­m a partir de 2001.

No intervalo entre os dois filmes, cresceu a influência do ativista, o que fica evidente na sua participaç­ão na conferênci­a de Paris, em 2015.

Como cinema, o novo documentár­io também supera o primeiro. Os diretores Bonni Cohen e Jon Shenk não abandonam o formato “filme de auditório”, mas são comedidos. Trechos de palestras surgem de modo pontual.

A intenção é mostrar Gore onde a crise ambiental se revela mais aguda e onde as imagens assombram. Assim, ele mete o pé na lama, no gelo e no degelo —uma espécie de Michael Moore com menos humor e mais credibilid­ade.

O filme também avança na dramaticid­ade de um trabalho de militância com frutos desiguais. Há momentos de Al Gore imerso na irritação.

Político habilidoso que é, talvez ele estivesse encenando a indignação. No palco dos performers globais, afinal, Al Gore tem um trunfo: seu roteiro é bastante convincent­e. DIREÇÃO Bonni Cohen e Jon Shenk PRODUÇÃO EUA, 2017, 1h38min QUANDO 24/10, 20h30 (Cinesesc); 25/10, 21h15 (Marabá); 26/10, 20h (Espaço Itaú - Frei Caneca); 27/10, 18h (Cinesala) AVALIAÇÃO muito bom

 ?? Fotos Divulgação ?? O ex-vice-presidente dos EUA Al Gore (centro) visita as vítimas de um tufão nas Filipinas em cena do documentár­io ‘Uma Verdade Mais Inconvenie­nte’
Fotos Divulgação O ex-vice-presidente dos EUA Al Gore (centro) visita as vítimas de um tufão nas Filipinas em cena do documentár­io ‘Uma Verdade Mais Inconvenie­nte’

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