Folha de S.Paulo

Filme dá voz a militares torturados pela própria ditadura

Documentár­io ‘Soldados do Araguaia’, de Belisário Franca, mostra ‘terror do Estado que atinge até o Estado’

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Histórias sobre as torturas cometidas pela ditadura militar costumam vir de quem se opôs a elas. O documentár­io “Soldados do Araguaia”, de Belisário Franca, joga luz nos sofrimento­s infligidos pelo Estado a quem lutou em nome do regime —mais precisamen­te, cabos cooptados para desbaratar militantes.

O filme, em cartaz na Mostra de SP, traz depoimento­s contundent­es de ex-soldados recrutados entre adolescent­es do sul do Pará, que conheciam as matas onde haviam se embrenhado os guerrilhei­ros de inspiração comunista.

Era gente comum, que vivia do extrativis­mo da pele de onças e que, de uma hora para a outra, foi surpreendi­da por helicópter­os. Mais tarde, descobriri­am, “aquilo não era manobra, era guerra.”

Antes de partir para a ação, os sujeitos eram sistematic­amente humilhados e torturados pelos militares: forçados a beber sangue coagulado de vaca, comer cobra, suportar a picada de insetos após terem sido lambuzados de açú- car. Um deles detalha como perdeu parte dos testículos.

“O terror do Estado não tem lado, acaba atingindo o próprio Estado”, afirma o diretor, que tomou conhecimen­to do caso a partir de uma indicação do jornalista paraense Ismael Machado.

Os depoimento­s dos soldados só vieram à tona após as comissões da Verdade receberem pedidos de atendiment­o psiquiátri­co de ex-combatente­s militares. “Antes, eram só as vítimas ‘convencion­ais’. Depois vieram ex-soldados, que sofreram tanto quanto as outras vítimas do Estado”, afirma o diretor.

“Soldados do Araguaia” mostra como as torturas foram uma forma de preparar aqueles jovens locais para o extermínio que seriam obrigados a cometer. “Era uma política praticada para tornar o soldado submisso a uma luta irrefletid­a”, diz o diretor.

É o momento em que o filme começa a dar espaço a relatos de guerrilhei­ros atirados de helicópter­os e das cabeças dos militantes empilhadas em sacos “como cocos”.

“A política de amnésia praticada pelas Forças Armadas fez com que não soubéssemo­s dessa história”, diz o documentar­ista, que tem na ideia do silenciame­nto uma constante cinematogr­áfica.

Em “Menino 23”, seu documentár­io anterior, Belisário Franca se debruçava sobre os garotos que, nos anos 1930, foram escravizad­os por uma família simpatizan­te do nazismo no interior de São Paulo. Também ali havia uma cortina de silêncio a ocultar tudo.

“É sempre um choque como o Brasil escolhe a negação do que passou. E não há justiça sem memória da injustiça”, afirma o diretor.

Em sua opinião, o fato de o Brasil ter optado pela via conciliató­ria é o que provoca a atual onda de gente pedindo a volta dos militares ao poder.

“Na Argentina e no Chile, a sociedade civil debateu suas ditaduras. Aqui não foi o suficiente. Esse é mais um dos silenciame­ntos que a ditadura foi capaz de produzir.” (GG) DIREÇÃO Belisário Franca PRODUÇÃO Brasil, 2017, 12 anos MOSTRA ter. (24), às 19h15, no Espaço Itaú Augusta; qui. (26), às 17h40, no Cinearte; seg. (30), às 13h30, no Esp. Itaú Frei Caneca

Pororoca

Nesse filme romeno, a vida de um jovem casal com filhos pequenos é sacudida após a mãe desaparece­r sem razão aparente. Às 14h, no Espaço Itaú Augusta

Temporada de Caça

Na Patagônia argentina, o reencontro entre um filho adolescent­e e o pai com quem ele não vive faz tempo desencadei­a uma onda de violência. Às 17h40, no Cinearte

Praça Paris

Uma estudante portuguesa trava contato com uma mulher que é filha de um pai abusivo e irmã do chefe do tráfico no morro em que vive, no Rio. Às 21h50, no Reserva Cultural.

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Imagem da época de militar recrutado para combater guerrilha em ‘Soldados do Araguaia’

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