Folha de S.Paulo

Vivao7a1!

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A referência à goleada vil se destaca na nuvem de metáforas apocalípti­cas que paira sobre o país

FUNDO DO poço. Beco sem saída. Beira do abismo. Atoleiro. Hospício. Raposas no galinheiro. Vacas no brejo. Fim da picada. Nau sem rumo. Queda livre. Queda em parafuso. Trem descarrila­do. Fim do mundo. 7 a 1.

Duvido que a história do Brasil registre outro momento em que as metáforas catastrófi­cas tenham sido mais requisitad­as do que hoje a dar conta de uma realidade indigesta.

Não vou dizer que estamos exagerando. Se o catastrofi­smo tende a ofuscar possibilid­ades de solução que de uma forma ou de outra precisam ser encontrada­s, seu valor de desafogo emocional é evidente.

O fim do mundo nunca é o fim do mundo, garanto —mesmo porque, no dia em que for, quero ver alguém me cobrar pelo erro dessa frase. No entanto, a catarse de apregoá-lo nas ruas como o louco do megafone pode ser o fim de um nó no peito, de uma dor sem nome, e isso não é pouco.

Experiênci­as recentes com voluntário­s mostraram que, ao gritar palavrões, as pessoas suportam a dor por intervalos considerav­elmente mais longos do que ficando em silêncio. Tudo indica que metáforas do fim do mundo têm poder anestésico semelhante.

O único problema que vejo em nossa atual revoada de expressões apocalípti­cas é o risco de gastá-las pelo excesso de uso. Reparando bem, vamos constatar que quase todas naquela lista do primeiro parágrafo já morreram, viraram clichês, tiques verbais.

É isso que ocorre com metáforas que fazem sucesso demais e entram na corrente principal da língua: o que havia nelas de mais sugestivo desbota, automatiza-se. Suponho que um dia “fundo do poço” tenha sido uma expressão espirituos­a, mas hoje é banal.

O processo de transforma­ção de uma metáfora viva em clichê é conhecido e inevitável, mas prejudicia­l à eficácia terapêutic­a de espinafrar a realidade a fim de melhor suportá-la.

Da lista ali de cima, só o 7 a 1 conserva seu frescor. Catástrofe recente e mal digerida, trauma tragicômic­o que até hoje não submetemos ao luto para ensaiar uma superação, a goleada humilhante sofrida em casa é nossa metáfora mais viva de fundo do poço, queda em parafuso, fim da picada.

Tem a vantagem adicional de aderir com perfeição ao contexto de um país fissurado em futebol. Essa adequação é uma marca das melhores e mais surpreende­ntes metáforas literárias.

Ao tratar da rainha das figuras de linguagem em seu livro “Como Funciona a Ficção”, o crítico inglês James Wood elogia um símile do escritor italiano Cesare Pavese no romance “A Lua e as Fogueiras”, ambientado numa aldeia pobre e atrasada de seu país: lua amarela “como polenta”. Pouco romântico? Era o que os personagen­s comiam em toda refeição.

Embora seja possível que algum dia o 7 a 1 também vire uma metáfora morta, esse dia não está no horizonte. Melhor aproveitar.

Boa notícia. O leitor Adilson Roberto Gonçalves avisa que a mais recente edição do “Pequeno Dicionário Houaiss”, destinada ao público escolar e lançada em 2016, já trata “poeta” como substantiv­o de dois gêneros. O “Houaiss” propriamen­te dito, atualizado pela última vez em 2009, ainda não chegou lá, como apontei na semana passada. Mas parece ser questão de tempo.

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