Folha de S.Paulo

AS BOAS MANEIRAS

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É estranho como são poucos os temas de nosso cinema atualmente. Por sorte, são bem diferentes os tratamento­s. Em “Vazante”, por exemplo, o tema do preto e do branco e de sua herança está tão presente quanto em “As Boas Maneiras”. São porém filmes inteiramen­te distintos.

Para começar, aqui estamos no presente e no registro do horror. Mas uma mãe (branca) morrerá ao dar à luz uma estranha criança, de que se ocupará a mulher negra que contratou como babá de seu futuro filho.

Não sei de melhor resumo para o filme do que a equação fornecida pelo crítico dos “Cahiers du Cinéma” que esteve no Festival de Locarno deste ano: “As Boas Maneiras” = Almodóvar + Jacques Tourneur + David Cronenberg + Marco Dutra-Juliana Rojas.

A equação é boa porque dá o crédito da originalid­ade aos brasileiro­s. Os demais estão lá? Francament­e, não vi muito Almodóvar. Mas Jacques Tourneur e seu terror de sugestão está lá aos montes, com toda a difícil sutileza que supõe. E, por vezes, lá encontrare­mos também Cronenberg.

No entanto a arte mais sutil é a da transforma­ção. No começo temos uma situação clássica: uma mulher rica com uma criada negra. Aos poucos, Ana, a moça rica, mostrará suas fragilidad­es. A criada crescerá não só aos seus olhos como aos nossos. Elas entrarão numa espécie de amor simbiótico, em que uma figura parece absorver a outra.

O momento seguinte dessa absorção se dá pela adoção do pequeno Joel pela babá negra, que, sintomatic­amente, se chama Clara. Não menos sintomatic­amente, convém lembrar que Joel tem significad­o bíblico nada modesto: Deus.

A companhia de Ana, primeiro, e de Joel, mais tarde, transforma Clara: antes instável, inadaptada aos empregos, torna-se mãe completame­nte dedicada. Ela fará todo o possível para que Joel cresça modestamen­te (numa quase favela paulistana), mas saudável e no desconheci­mento de suas origens.

O que virá depois? Bem, Joel buscará suas origens. Joel reencontra­rá talvez o seu destino. E o que virá depois? Bem, como dizia a frase final de um magnífico filme de Tourneur (“A Noite do Demônio”), certas coisas é melhor não saber. Pelo menos não antes da hora.

Digamos, em todo caso, que “As Boas Maneiras” dá sequência à obra admirável de Marco Dutra e Juliana Rojas (seja em conjunto, seja individual­mente) e do coletivo paulista Filmes do Caixote.

Tão pouco preocupado com o Brasil, na superfície, esse filme tem a nossa cara. Escarrada (à maneira de Cronenberg), embora sob a roupagem mais tradiciona­l do filme de lobisomem.

Mas também é convenient­e lembrar que dá sequência a uma série de filmes brasileiro­s admiráveis que começam a impor internacio­nalmente uma dramaturgi­a do cinema brasileiro desenvolvi­da por essa geração que começa a filmar no século 21.

Com “As Boas Maneiras” chegam “Gabriel e a Montanha”, “Era uma Vez Brasília” , “Arábia”, “As Duas Irenes”. Espera-se que as salas comecem a lhes abrir espaços condizente­s e que um público maior possa descobri-los. (INÁCIO ARAUJO) DIREÇÃO Juliana Rojas/Marco Dutra ELENCO Isabél Zuaa, Marjorie Estiano, Miguel Lobo, Cida Moreira PRODUÇÃO Brasil, 2017, 14 anos QUANDO 26/10, às 21h20, no Cinesesc; 27/10, às 18h, no Reserva Cultural 2; 29/10, às 18h30, na Cinemateca BNDES AVALIAÇÃO ótimo

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