CRÍTICA Ensaios de Dalrymple põem na vitrine o horror do comunismo
Obra reúne cinco textos asfixiantes que relatam as experiências do autor britânico em ‘paraísos’ do regime
FOLHA
Por que não existe um Museu do Comunismo? A pergunta foi feita, tempos atrás, pelo colunista James Bartholomew no “Daily Telegraph”.
Todos conhecemos os horrores do nazismo, de Auschwitz, do Holocausto. Mas como explicar a ignorância atroz sobre os crimes da União Soviética, o seu tenebroso sistema prisional (o gulag) ou até as matanças pela fome que Stálin provocou na Ucrânia na década de 1930 (o chamado Holodomor, em que 4 milhões perderam a vida)?
Bartholomew mostrava-se disponível para trazer um museu do gênero para Londres. Espero que consiga. Mas, enquanto o museu não chega, Theodore Dalrymple ajuda com o seu “Viagens aos Confins do Comunismo”.
Após a leitura, vaticino: é o melhor livro de Dalrymple, embora seja de uma tristeza e asfixia sem limites. Reúne cinco ensaios que são, no essencial, experiências do autor nos “paraísos” comunistas da Albânia, Coreia do Norte, Romênia, Vietnã e Cuba. Dalrymple é conhecido por seu humor sutil. Pela primeira vez, não ri uma única vez.
Vantagens do comunismo? Duas: a limpeza das calçadas e a raridade do crime de rua (isso, claro, se esquecermos o organizado pelo Estado). E a completa ausência de tráfego nas estradas, mas não quando significa também a ausência de sinal de vida.
A vida aparece em páginas que se leem entre o pasmo e a depressão. Exemplo: na Coreia do Norte, Dalrymple visitou um shopping. Quem seriam os clientes? E que produtos estariam à venda?
Ele foi, flanou, observou. Até perceber que os clientes que desciam e subiam escadas rolantes eram sempre os mesmos. “É como se o diretor de uma colônia de leprosos ordenasse a encenação de um concurso de beleza.”
A farsa daquele momento é a metáfora do comunismo. Uma mentira institucionalizada em que ninguém acredita —mas de que todos participam por sobrevivência.
Ao partilhar as impressões com um colega, crente do regime, a resposta: “E daí? Muita gente vai à Harrods sem comprar nada, só para olhar”. A resposta é mais grotesca do que a encenação de escravos.
De resto, as experiências repetem-se. A fome. O medo. A “emigração interior” de indivíduos (“ser deixado em paz é todo o segredo da felicidade numa ditadura”). A monumentalidade vazia dos mausoléus. A estética kitsch e pseudorreligiosa do regime e de seus tiranos. E o silêncio sepulcral das cidades. “As pessoas andavam em silêncio, insignificantes como formigas numa estrada.”
No fim, o que fica? Três observações ressaltam do livro.
A primeira, certíssima, é que a propaganda dos regimes comunistas não tem como objetivo a implantação de uma mentira. O objetivo é humilhar, pela cumplicidade forçada, cada alma submissa.
A segunda, que decorre da primeira, é que a carência material nem sempre é um perigo para o regime. Pelo contrário: é uma forma eficaz de controle. Quem vive faminto em filas para comprar migalhas adquire o temperamento dócil e anêmico.
Por último, como justificar a mendacidade dos “intelectuais” do Ocidente, que aplaudem aberrações ideológicas mesmo quando as experimentam na carne?
Por ressentimento contra o mundo, maior do que a simples dignidade humana. Avisa o autor: “As pessoas que amam a liberdade não bebem na fonte do despotismo”.
Terminei o livro grato pela partilha, mas nauseado. Saí para a rua e, confrontado com o ruído da cidade e as conversas das pessoas, senti-me novamente vivo. AUTOR Theodore Dalrymple TRADUÇÃO Pedro Sette-Câmara EDITORA É Realizações QUANTO R$ 49,90 (256 págs.) AVALIAÇÃO ótimo