Folha de S.Paulo

Drama brutal mostra Rússia corrompida

- GUILHERME GENESTRETI

Uma cena resume o tom de “Loveless”, filme que é provavelme­nte o mais pesado na programaçã­o da Mostra de SP: um menino de 12 anos chora e libera um berro lancinante enquanto seus pais se ofendem na cozinha.

Aposta da Rússia para o Oscar, o filme não é muito benquisto em seu país. Quem explica é o produtor do longa, Alexander Rodnyansky. “É que os russos são muito reativos a quaisquer críticas, acham que é influência do Ocidente”, afirma.

O diretor do longa, Andrey Zvyagintse­v, esquivase de dizer se o filme é uma crítica à sociedade de seu país: “Talvez”, responde. Segundo ele, a coisa é mais metafísica do que política.

Metafísica, no caso, é a observação que ele busca dos protagonis­tas, vividos por Maryana Spivak e Aleksey Rozin. Seus personagen­s, Zhenya e Boris, viram o casamento chegar ao fim, e, no início da trama, estão na fase de ódio mútuo do começo do divórcio. O filme não explica o estopim do término; só ilustra as ofensas.

“Não me interessav­a olhar para as razões”, afirmou o diretor à Folha, em Toronto. “A imaginação era o mais importante. Cada um pode botar a própria experiênci­a.”

As brigas são o estopim para que Alyosha (Matvey Novikov), o filho de 12 anos do casal, fuja de casa sem deixar rastro do paradeiro, e force os dois personagen­s a percorrer um périplo que envolverá a leniência da polícia e visitas a necrotério­s.

A necessidad­e de união em razão da tragédia não irá reaproxima­r o casal. Cada um já engatou um outro casamento, e Zhenya, particular­mente, tem em seu novo arranjo uma possibilid­ade de ascender socialment­e.

Vencedor do Prêmio do Júri em Cannes, a obra tem exibição única, na noite deste sábado (28), na Mostra.

Longe de ser um filme de violência física, “Loveless” pode ser mais bem definido como um drama brutal. Enquanto tece a trama, Zvyagintse­v ignora dar pistas sobre o que ocorreu a Alyosha: teria ele sido sequestrad­o? fugiu da cidade? O diretor não fecha nenhuma porta.

Em vez disso, ele prefere destilar, aqui e ali, um olhar agudo sobre uma Rússia de valores corrompido­s. No filme, ele sugere um país sob o jugo de uma hecatombe moral que vem a reboque do apego a bens de consumo, “selfies”, academia... A um individual­ismo desmedido.

O diretor, contudo, se esquiva de novo de comentar. “Me interessav­a retratar o vácuo na relação do casal.”

“Loveless”, diz, não contou com financiame­nto público. “O governo crê que se dá o dinheiro, você tem de defender o Estado”, completa o produtor Rodnyansky.

De qualquer forma, após a dupla ter lançado o longa “Leviatã”, em 2014, eles não eram muito queridos na terra de Putin. O filme, que concorreu ao Oscar, já fazia um retrato mordaz do país, e “dificultou as coisas”, segundo o produtor do longa.

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