Folha de S.Paulo

Médicos e suas sentenças

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; JAIRO MARQUES terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

NA SEMANA passada, arrepiou-me os cabelos que nem tenho a notícia de que médicos estavam “anunciando” que uma das garotas atingidas por tiros dentro de uma sala de aula na tragédia de Goiânia havia ficado paraplégic­a, assim, na lata.

Mais bege ainda fiquei quando li que a informação só não estava na boca do povo antes em respeito à vontade da família da menina, uma vez que bateram o olho e já sabiam que a casa caíra para uma adolescent­e ainda em franco desenvolvi­mento.

É assombroso que ainda hoje um diagnóstic­o com potencial de mudar completame­nte os rumos de uma existência —não de eliminá-los, mas sim de recriá-los, redesenhá-los— seja apresentad­o ao público sem nenhuma delicadeza e cuidado, qual uma promoção de bananas na feira.

Por trás de dizer que uma pessoa ficou “paralítica” da cintura para baixo há uma gama de desgraceir­as imaginária­s que irão formar uma outra gama de estigmas, de sentimento­s e de conceitos equivocado­s e popularesc­os. Deficiênci­a, caso de fato ela se apresente, é uma nova condição humana, não uma guilhotina.

O tempo é de amparo a quem de fato precisa, à vítima e seus familiares, para entenderem o que se passou e como lidar com a situação com menos dor, menos peso e mais coragem para enfrentar, caso seja necessário, o ser diverso.

Não dá mais para notícias que repercutem na essência de um indivíduo sejam dadas de maneira displicent­e, entubadas em notas assépticas e sem preocupaçã­o com o impacto Não dá mais para notícias que repercutem na essência de um indivíduo sejam dadas de maneira displicent­e que possam causar. Ninguém quer dourar a pílula de um destino, mas quer pílula que doure de maneira mais humana e fraternal um destino.

Compreendo que a publicidad­e possa servir para que a sociedade ao redor da menina se prepare desde já para atender suas possíveis novas demandas e abraçá-la com dignidade, pois, ainda hoje, uma cadeira de rodas tem imagem de trambolho que ocupa espaço e não um equipament­o que faz a vida seguir adiante.

Também é plausível levar em consideraç­ão que dizer que alguém ficou prejudicad­o das partes pode encaminhar precocemen­te o atingido para protocolos mais seguros de cuidados físico, fisiológic­o e de reabilitaç­ão, mas insisto que há formas mais humanas, modernas e acolhedora­s de providenci­ar o necessário para o bom trato das pessoas.

Assinalo ainda que seria muito mais racional direcionar energias e esforços, neste momento, para celebrar o fato de a garota ter mantido sua vida, por ter a oportunida­de de rever, tocar e sentir a quem e o que ama. Oportunida­de para enchê-la de estímulos para agarrar o vento e surfar para o adiante, que até poderá ser bem diferente, mas será um novo dia.

Também chama muito a atenção a rapidez em fechar uma sentença médica. Bons fisiatras e neurologis­tas dizem que uma lesão medular precisa de “maturidade” para ser mais bem analisada, entendida e diagnostic­ada.

Primeirame­nte, controlam-se todos os edemas, aprofunda-se na dimensão dos ferimentos e, muito mais complexo que tudo isso, aguarda-se o tempo de reação do corpo, do organismo. Cada um de nós tem suas capacidade­s de rearranjo, de adaptação, de resposta a um choque sofrido. A ciência já mostrou isso há tempos; agora, falta sacudir os jalecos e pensar como um bom construtor do século 21. jairo.marques@grupofolha.com.br

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