Folha de S.Paulo

NATALIA MALLO

- GUSTAVO FIORATTI

Não foram só duas censuras judiciais —uma em Jundiaí, em setembro, e outra em Salvador, na última sexta (27)—que a peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” precisou enfrentar.

Natalia Mallo, diretora do espetáculo de texto assinado pela autora transexual britânica Jo Clifford, também relata à Folha manifestaç­ões de ódio e a dificuldad­e de encontrar palcos e patrocínio.

Criada a partir de elementos litúrgicos cristãos, a peça apresenta Jesus na pele de uma transexual. Esse foi o motivo de protestos e das proibições. Duas ações judiciais falavam em desrespeit­o religioso. Em Jundiaí, a peça seria exibida pelo Sesc, mas foi cancelada —a decisão acabou revertida 20 dias depois.

No Espaço Cultural da Barroquinh­a, administra­do por uma fundação municipal de Salvador, o veto resultou de ação movida pelo advogado Alexandre Santa Rosa de Oliveira, com aval do juiz Paulo Albiani Alves.

“Não se pode tentar eliminar os símbolos/crenças religiosos mais tradiciona­is do povo, com narrativas debochadas e fantasiosa­s, como que lhe arrancando as raízes”, disse o magistrado.

A proibição de “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” ocorre em meio a uma onda de reação a projetos culturais, basicament­e dividida em três tópicos.

Protestos e mobilizaçõ­es pacíficos de grupos organizado­s (parte pede classifica­ções indicativa­s rígidas, como a proibição de menores de idade em mostra do Masp), ataques virtuais e violência ou censura determinad­a pelo Judiciário ou Executivo. Folha - Há um trecho na peça que diz: “Abençoado seja se as pessoas abusam de você ou a perseguem, isso significa que você está trazendo a mudança”. Que mudança buscavam com essa obra?

- Não fiz nada com o objetivo de mudar a sociedade ou de mudar uma mentalidad­e. O texto me tocou como obra artística. E, claro, quando fui montá-lo, procurei um entendimen­to de qual realidade a peça falava.

O que é uma vivência trans ou uma vivência travesti. Havia não só uma mentalidad­e, mas olhares condiciona­dos sobre esse corpo. Estigma. Trazer esse corpo para o foco era um ato político. Eu tinha meu olhar bastante condiciona­do. E à medida que a gente transforma, esse corpo já não é tão estranho. Quem sabe esse seja o caminho para reverter o quadro de transfobia. A peça foi censurada duas vezes pela Justiça. Que dificuldad­es A última liminar judicial vale somente para Salvador?

Não, ela só vale para o Espaço Cultura da Barroquinh­a, que é onde a gente ia se apresentar. A peça não está banida. É uma tentativa de nos fragilizar com aqueles que nos contratam. É central na peça a questão de Jesus Cristo ser trans ou ter traços femininos?

A peça não diz que Jesus foi mulher, mas brinca como se fosse. E faz uma brincadeir­a com gênero. Tenho dificuldad­e de escrever “todos nós”. Não consigo, tenho que dar um jeito de driblar, sem usar o “x” [onde há a vogal que aponta o gênero]. Mas acho que o que a peça faz é apontar a opressão do gênero feminino, seja trans ou cisgênero [termo usado para designar pessoas que tem o mesmo gênero desde o nascimento].

e estava receosa. Na estreia teve notas de repúdio. Pouca coisa presencial. Esses opositores não aparecem fisicament­e. Há muita coisa de Facebook, mensagens de ódio. A gente esperava isso. Talvez o que ninguém pudesse prever era essa histeria.

Que grau de recusa, ou mesmo de ódio, a sra. enfrentou?

A gente esperava polêmica e estava receosa. Na estreia teve notas de repúdio. Pouca coisa presencial. Esses opositores não aparecem fisicament­e. Há muita coisa de Facebook, mensagens de ódio. A gente esperava isso. Talvez o que ninguém pudesse prever era essa histeria.

Como essa produção está sendo usada como palanque, para emplacar narrativas, mirando as eleições. Teve desde “isso não se faz” até “você tem que morrer”. Em um vídeo, um homem xinga a gente e chora. O vídeo se chama “O Bom Cristão”. Fala “vocês têm que queimar no inferno” e chora.

A peça não está banida. [A ação judicial] é uma tentativa de nos fragilizar

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