Folha de S.Paulo

Os ex-moradores começa-

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eles passaram a retornar ao local destruído todo fim de semana.

Fazem comida, bebem, batem papo, relembram a tragédia e, contrarian­do a vontade da mineradora, dormem no palco da destruição.

“A gente é a pedra no sapato da Samarco”, afirma o motorista Cristiano José Sales, 35.

Ele aumenta o volume do aparelho de som, ligado a uma bateria, já que não há energia em Bento.

Está tocando um cover de “London, London”, música de Caetano Veloso, interpreta­da pelo vocalista do RPM. “Eita, dancei demais isso lá no Bento!”, exclama Cristiano, lembrando seu passado no povoado, antes da destruição causada pela lama.

De sua casa, ele só conseguiu salvar uma camisa do Cruzeiro, seu time do coração, toda suja dos rejeitos que vazaram da barragem há quase dois anos.

A turma que reocupa o povoado se intitula “Loucos por Bento Rodrigues” e tem cerca de 30 pessoas, mas o número é variável.

A reportagem da Folha esteve numa das casas em que eles dormem, da dona de casa Terezinha Quintão, 51, que apesar de intacta foi saqueada após o rompimento.

De lá roubaram até o batente da porta. Os Loucos reformaram tudo.“Dissemos: olha Terezinha, aprendemos com o Pimentel. Vamos desapropri­ar sua casa”, afirma Marcos Muniz, 52, que é ex-funcionári­o da Samarco.

Assim como outros moradores do povoado, ele teve os seus terrenos em Bento Rodrigues desapropri­ados por decreto do governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), para a construção de um dique de contenção da lama.

Na Semana Santa deste ano, eles queimaram no vilarejo um boneco de Judas vestido com um uniforme da Samarco que Muniz guardava em sua casa.

A iniciativa causou revolta de moradores da sede de Mariana, que fica a 23 km de Bento. O município depende financeira­mente da empresa, cujas atividades de mineração estão paralisada­s.

Mas os Loucos pretendem queimar outro Judas no ano que vem. “O boneco representa­va a empresa, e não os funcionári­os. A culpa do rompimento é da Samarco, e não nossa”, diz a auxiliar odontológi­ca Simaria Quintão, 43. RETORNO ram a voltar a Bento pouco antes do primeiro ano do rompimento. Em setembro de 2016, celebraram a festa de Nossa Senhora das Mercês.

Depois, puseram na cabeça que iam dormir no lugar, apesar de a visita estar restrita às quartas e finais de semana, das 8h às 18h, definida por um decreto municipal.

“Criamos um grupo de Whatsapp e intitulamo­s ‘Loucos’. Foi assim que começou”, explica a auxiliar odontológi­ca Mônica Silva, 32.

Numa sexta-feira, dia em que a visita é proibida, a Polícia Militar apareceu no local, a pedido da segurança, para registrar boletim de ocorrência por descumprim­ento de ordem judicial. Mônica se prontifico­u a ser notificada por eles.

Ela conta que disse ao policial militar: “Já te adianto uma coisa: vocês vão fazer muito boletim de ocorrência em nome da gente, porque a gente não vai deixar de vir”. A Samarco afirma que cumpre o decreto. FESTA A tarde cai. Sandro começa a ajeitar uma lâmpada na varanda, Cristiano acende uma churrasque­ira improvisad­a. Com a bateria, conseguem iluminar o local, pôr o som para tocar e até mesmo ligar uma televisão.

Quando fazem uma festa com música ao vivo, o que já aconteceu, têm de levar um gerador de eletricida­de.

Celular não pega por ali. Para usar o aparelho, eles vão até a parte baixa de Bento, destruída, onde há sinal.

O grupo passa a relembrar o momento em que souberam do rompimento e os dias posteriore­s, sob temor de que familiares estivessem entre as vítimas. Também recordam os mortos.

“O Tiaguinho vivia muito próximo da gente”, lembra Simaria sobre Tiago Damasceno, 7, um dos mortos. “Perguntáva­mos se ele era Cruzeiro ou Atlético e ele dizia: ‘Sou Curíntia’”, relembra.

Marcos Muniz fala de seu tempo de Samarco. “Eu tenho até uma foto com o Ricardo Vescovi”, diz, sobre o ex-presidente da companhia, que é réu por homicídio na ação sobre o caso e nega a acusação.

O novo Bento Rodrigues, que será reconstruí­do em outro local, tem previsão para estar pronto em março de 2019, mas o terreno ainda não foi regulariza­do.

Os Loucos prometem não esquecer o velho Bento —que faz parte de suas memórias e é o marco da maior tragédia ambiental ocorrida no Brasil— mesmo com a construção do novo Bento.

“A gente não vai deixar isso aqui virar uma barragem, para acabar com a nossa história. Vamos lutar para ser um museu a céu aberto”, afirma Sandro. “Mas se a gente puder continuar vindo para cá nos fins de semana, já é alguma coisa.”

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