Folha de S.Paulo

ESPÍRITO NACIONAL

Brasil foi pioneiro na importação do detetive Spirit, principal personagem de Will Eisner, cujo centenário é celebrado neste ano

- SÁBADO, 4 DE NOVEMBRO DE 2017 DIOGO BERCITO

DE MADRI

O mercado dos quadrinhos tem uma dívida com Will Eisner (1917-2005). Foi esse artista americano, cujo centenário é celebrado neste ano, que popularizo­u o termo “novela gráfica” e convenceu leitores de que os gibis podiam ser coisa de gente adulta.

Mas Eisner, por sua vez, tem uma dívida com o Brasil. Foi nas bancas brasileira­s que seu principal personagem, o detetive Spirit, teve seu primeiro sucesso internacio­nal e continuou a circular mesmo quando já definhava nos EUA.

“O Brasil foi o pioneiro na importação do Spirit [em 1941, um ano após sua estreia nos EUA]”, diz à Folha o britânico Paul Gravett, especialis­ta em HQs e curador de “Mangasia”, mostra sobre gibis asiáticos em cartaz em Roma.

O Spirit era publicado nacionalme­nte na revista carioca “Gibi” e apenas em 1967 chegou ao grande mercado europeu, a França —país que homenageou Eisner neste ano no festival de Angoulême, espécie de Cannes das HQs.

Denny Colt, vulgo Spirit, era um detetive algo soturno que, após ser dado como morto, decidiu combater o crime usando a proteção de uma máscara em torno dos olhos.

Seu figurino era inconfundí­vel —terno azul-marinho, gravata vermelha e luvas—, assim como eram típicos os cenários: becos noturnos e os topos dos arranha-céus.

O charmoso personagem se enraizou de tal maneira no Brasil que surpreende­u o próprio criador em sua visita ao Rio em 1991, na Bienal Internacio­nal dos Quadrinhos.

Gravett esteve no evento e se recorda de discutir a questão com Eisner “em uma cobertura, à noite, uma coisa bem Spirit”. “Esperávamo­s encontrar uma comunidade de fãs limitada, de uma certa idade, mas havia seguidores de vários perfis, de avós a netos.” GUERRA Spirit estreou nos EUA na Segunda Guerra (1939-1945), quando conflitos barravam a exportação à Europa. Editoras se voltaram para a América Latina. O último capítulo foi publicado nos EUA em 1952 e, segundo Gravett, Spirit foi esquecido pelos americanos.

Mas no Brasil a obra foi reciclada em diversos formatos por décadas. As capas eram reinventad­as por artistas nacionais, como Walmir Amaral, em publicaçõe­s hoje clássicas.

O centenário de Eisner foi comemorado nos Estados Unidos com uma exposição itinerante. Por ora não há previsão de que ela chegue ao Brasil.

Para Gravett, as celebraçõe­s servem de estímulo às novas gerações de quadrinist­as. Artistas podem se lembrar de que mesmo o pai da novela gráfica não encontrava editoras interessad­as em seu trabalho —Eisner financiou as suas primeiras tiragens.

“Isso diz muito sobre seu comprometi­mento, sua crença de que aquilo valia a pena.”

Outro incentivo, segundo Gravett: Eisner insistia que se levasse quadrinhos a sério — só neste ano o brasileiro Jabuti passou a premiar HQs.

Não por acaso, o principal troféu de quadrinhos nos EUA se chama Eisner Awards. No ano passado, os brasileiro­s Fábio Moon e Gabriel Bá venceram na categoria “adaptação de outro meio” ao transforma­r em gibi o livro “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum.

A importânci­a de Eisner não está relacionad­a apenas ao Spirit. Uma de suas principais obras é “Um Contrato com Deus” (1978), sobre a comunidade judaica de Nova York, cidade em que nasceu.

Ele também escreveu livros técnicos sobre HQs, em uma época em que o gênero ainda não tinha tamanho status. Seu “Quadrinhos e Arte Sequencial”, de 1985, é um clássico.

Apesar da variedade de personagen­s e temas, Eisner mantinha algo constante: a ênfase no design de suas páginas, explorando soluções criativas, por vezes ignorando os limites dos quadros.

Essa caracterís­tica era vital em Spirit, em que até o título virava elemento gráfico.

Em uma das histórias, a palavra “Spirit” foi desenhada como se fossem papéis esvoaçando sobre uma cidade. Noutra, o texto de introdução estava escrito dentro da letra “S”. Foi essa caracterís­tica que inspirou esta página da “Ilustrada”, desenhada pelo brasileiro João Montanaro.

“Seu design era extraordin­ário”, diz Gravett. “Ele se inspirava no cinema, e desenhava como se fossem storyboard­s. Dava ênfase ao ‘gráfica’ de ‘novela gráfica’.”

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Logo da ‘Ilustrada’ com o personagem Spirit, desenhado por João Montanaro à moda de Eisner
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Otavio Dias de Oliveira - mar.1993/Folhapress O artista gráfico Will Eisner, criador do detetive Spirit

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