Folha de S.Paulo

Reconstruç­ão envolve a memória de Bento Rodrigues

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DO ENVIADO AO RIO DOCE (MG/ES)

As 225 famílias que habitavam Bento Rodrigues (MG) estão espalhadas por imóveis alugados na cidade de Mariana enquanto aguardam a construção de uma nova vila. Isso só deve ocorrer em 2018, e a mudança terá de esperar até 2019.

O plano de ruas seguirá o mesmo traçado do velho Bento (usa-se o masculino na região para designar a localidade). O relevo do terreno adquirido pela Fundação Renova, porém, é bem mais acidentado que o original, hoje tomado por um lago.

A área de 375 hectares plantada com eucaliptos tem o nome de Lavoura. Como que para acentuar a falta de sorte dos futuros moradores, ela pegou fogo no final de outubro.

Reeditar o arruamento da vila foi escolha dos moradores para manter a vizinhança e algo da memória do vilarejo fundado no começo do século 18. Mas não será fácil, porque desaparece­u para sempre o centro da vida social, na capela de São Bento.

Sobraram apenas as fundações, hoje protegida por uma enorme tenda, alguns objetos e fragmentos.

A Fundação Renova contratou a empresa Estilo Nacional para fazer o resgate desse material, que começou com oficinas de treinament­o para a população local sobre como coletá-los.

Mais sorte tiveram outras três capelas, Mercês, Santo Antônio (Paracatu de Baixo) e Nossa Senhora da Conceição (Gesteira). Embora ainda estejam de pé, seu conteúdo foi retirado por causa do risco de saques.

Até agora, cerca de 2.300 peças foram recolhidas nos cerca de 100 km de córregos e rios afetados pela lama. Um memorial ou museu deverá ser construído, mas por ora permanecer­ão na reserva técnica, em Mariana. Há de tudo um pouco, de moedas a paramentos bordados com ponto de Paris, de papel de bala a roupas de anjos e garrafas de água benta. Do altar de madeira de São Bento há fragmentos para recompor um terço da obra.

“Qual o efeito da lama sobre a policromia?”, pergunta Mara Fantini, especialis­ta em restauraçã­o e conservaçã­o que coordena o trabalho de resgate cultural. “Não encontramo­s nenhuma referência bibliográf­ica. Só há história oral [na região].”

Sobre a pequena cama de espuma plástica repousa o Cristo com cerca de 30 cm. Cogitou-se que seria obra de Francisco Vieira Servas (1720-1811), contemporâ­neo de Aleijadinh­o, mas análises descartara­m a hipótese.

É um grande quebra-cabeças. Fantini pega na prateleira uma cabeça de madeira com olhos azuis e mostra como se encaixa na cabeça de uma Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, recolhida em Gesteira. “O caso foi tão excepciona­l que nós temos de construir tudo. Espero que não sirva de referência para mais ninguém.” (ML)

A Renova conta com um orçamento de R$ 500 milhões para financiar prefeitura­s na construção de redes de coleta de esgotos e na reforma de estações de tratamento de água.

Foram instaladas 22 estações automatiza­das para monitorar a qualidade da água na bacia do Doce, e há 92 pontos de coleta manual. Até agora não surgiram evidências de que estejam fora dos padrões legais —com exceção da turbidez, que os ultrapassa após chuvas torrenciai­s.

Isso não quer dizer que já se possa dar o Doce por ressuscita­do. Em Colatina (ES), a 130 km da foz, há locais em que se pode atravessar o rio a pé, com o tanto de areia a assoreá-lo após séculos de pecuária intensiva e erosão.

Roberto Carlos de Sousa caminha pelo banco de areia, perto da ponte Florentino Avidos. Até as fundações dos pilares estão para fora da água rasa. O pescador eventual diz que naquela altura do rio não morreram peixes por causa da lama. Como prova, mostra o garrafão com peixinhos que usa como isca para douradas.

Não sabe dizer se a pesca foi ou não proibida ali (está liberada), nem se há risco de contaminaç­ão, por conta dos esgotos. “Na realidade, ninguém fala nada.”

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