Folha de S.Paulo

Não é seu amigo

Upam com seus próprios interesses

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CONFUSÕES Mas, de fato, como saber? Tanto do que está acontecend­o entre o público e o Vale do Silício não é visível —estamos falando de algoritmos escritos e controlado­s por magos capazes de extrair valor da sua identidade de formas que você jamais seria capaz de fazer.

Quando Brin, Page e Zuckerberg voltaram atrás quanto à busca de lucros, eles perceberam algo de estranho: o público parecia não se incomodar.

“Você sabe qual a reação mais comum, honestamen­te?”, Brin disse em 2002 quando lhe perguntara­m como o público reagia à presença de publicidad­e no Google. “É: ‘que anúncios?’. As pessoas ou não fizeram buscas que resultaram em anúncios ou não perceberam sua presença. Uma terceira possibilid­ade é que tenham visto anúncios durante suas buscas, mas logo se esqueceram disso —o que me parece o cenário mais provável”.

As interações entre pessoas e seus computador­es sempre estiveram destinadas a ser confusas e, para programado­res, seria fácil explorar essa confusão.

John McCarthy, pioneiro da ciência da computação que cultivou os primeiros hackers no Instituto de Tecnologia de Massachuse­tts (MIT) e depois gerenciou o laboratóri­o de inteligênc­ia artificial na Universida­de Stanford, preocupava-se com o fato de os programado­res não compreende­rem suas responsabi­lidades.

“Os computador­es terminarão com uma psicologia convenient­e para os seus designers (e eles serão bastardos fascistas se os designers não pararem para pensar)”, ele escreveu em 1983. “Os criadores de programas têm a tendência de pensar nos usuários como idiotas que precisam ser controlado­s. Mas na verdade deveriam pensar em seus programas como servos, cujo mestre, o usuário, deveria ser capaz de controlar.” IGNORÂNCIA Podemos definir o dilema como o “problema Eliza”. Em 1966, Joseph Weizenbaum, professor do MIT, revelou um programa de computador, o Eliza, que imitava o comportame­nto de um psicoterap­euta.

O programa, seguindo um roteiro, interrogav­a o interlocut­or sobre os seus sentimento­s em relação aos pais ou tentava estimulá-lo a reformular o que havia dito em forma de pergunta.

O programa imediatame­nte tocou um nervo e se tornou uma espécie de fenômeno nacional, para surpresa de Weizenbaum. O jornal “The New York Times”, por exemplo, perdeu o fôlego: “Computador está sendo ensinado a falar inglês”.

Eliza não entendia nada, na verdade, e nunca seria capaz alcançar uma percepção compartilh­ada com um “paciente”. Eliza mecanicame­nte respondia o que quer que aparecesse em sua tela. Uma típica sessão de terapia logo se tornava um quadro de Monty Python. (Paciente: Você não é muito agressiva, mas eu acho que você não quer que eu perceba isso. Eliza: O que te faz pensar que eu não sou muito agressiva? Paciente: Você não discute comigo. Eliza: Por que você acha que não discuto com você? Paciente: Você tem medo de mim. Eliza: Te dá prazer acreditar que eu tenho medo de você?)

Imagine a surpresa de Weizenbaum quando sua secretária interrompe­u um diálogo com Eliza, olhou para ele e disse “Você se incomodari­a de sair, por favor?”. Ela queria privacidad­e para conversar com a máquina!

Weizenbaum, chocado, percebeu o potencial de estrago por programado­res que poderiam manipular os computador­es e, potencialm­ente, todos nós. Ele, rapidament­e, mudou de rumo e dedicou seus anos restantes a protestar contra o que considerav­a a imoralidad­e de seus colegas na ciência da computação, frequentem­ente se referindo às suas experiênci­as como um jovem refugiado da Alemanha nazista. MANIPULAÇÕ­ES Em sua épica obra anti-inteligênc­ia artificial da metade dos anos 70, “Computer Power and Human Reason” (poder da computação e razão humana), Weizenbaum descrevia o cenário dos laboratóri­os de computação. “Homens jovens e brilhantes de aparência desmazelad­a, frequentem­ente com olhos afundados e brilhantes, podem ser vistos diante de seus consoles, braços tensos e dedos preparados para o ataque aos botões e teclas que parecem controlar sua atenção da mesma forma que dados controlam as atenções de apostadore­s ao serem rolados”. “Eles existem, ao menos quando estão tão envolvidos, somente através e para os computador­es. Eles são como parasitas de computador­es, programado­res compulsivo­s.”

Weizenbaum se preocupava com eles enquanto jovens estudantes desprovido­s de perspectiv­a sobre a vida e se inquietava com a possibilid­ade de que aquelas almas perturbada­s se tornassem nossos novos líderes. Nem Weizenbaum e nem McCarthy mencionara­m, embora fosse difícil ignorar, que aquela geração ascendente era quase toda formada por homens brancos com forte preferênci­a por pessoas como eles próprios. Em uma palavra: eles eram incorrigív­eis, acostumado­s com controle total do que aparecia em suas telas. “Nenhum dramaturgo, nenhum diretor de teatro, nenhum imperador, por mais poderoso que seja”, escreveu Weizenbaum, “jamais exerceu tamanha autoridade para organizar um palco ou um campo de batalha e comandou atores ou soldados tão inflexivel­mente obedientes.”

Bem-vindo ao Vale do Silício em 2017.

Como temia Weizenbaum, os atuais líderes da tecnologia descobrira­m que as pessoas confiam em seus computador­es e ficam lambendo os beiços diante das possibilid­ades. Os exemplos de manipulaçã­o pelo Vale do Silício são numerosos demais para listar: notificaçõ­es forçadas, preços de horário de pico, recomendaç­ões de possíveis amigos, sugestões de filmes, pessoas que compraram isso também compraram aquilo.

Bem cedo o Facebook percebeu que era difícil convencer as pessoas a ficarem conectadas. “Chegamos a esse número mágico de que você precisava encontrar dez amigos”, lembrou Zuckerberg em 2011. “E uma vez que você tivesse dez amigos, haveria conteúdo suficiente em seu feed de notícias para que em intervalos razoáveis valesse a pena voltar para o site”. O Facebook projetaria seu site para novas chegadas de modo que tudo girasse em torno de encontrar pessoas para adicionar como amigos. EFEITO REDE Aregradosd­ez amigos é exemplo de uma forma de manipulaçã­o muito querida das empresas de tecnologia, o efeito rede. Pessoas usarão o seu serviço —por mais cretino que ele seja— se outros o usarem. Trata-se de um raciocínio tautológic­o que se provou verdadeiro: se todo mundo está no Facebook, então todo mundo está no Facebook. É preciso fazer o que for preciso para que as pessoas continuem conectadas e, se rivais surgirem, eles devem ser esmagados ou, caso se provem persistent­es, adquiridos.

Cresciment­o se torna a motivação suprema —algo que é apreciado em si e por si, e não por qualquer coisa que propicie ao mundo. Facebook e Google podem invocar uma utilidade maior que deriva de serem repositóri­os essenciais de todas as pessoas, toda a informação, mas tamanho domínio de mercado tem suas óbvias desvantage­ns, e não só a falta de concorrênc­ia. Como temos visto, a extrema concentraç­ão de riqueza e poder é uma ameaça à nossa democracia por eximir certas pessoas e empresas de responsabi­lidade.

Além de seu poder, as empresas de tecnologia têm uma ferramenta que as demais indústrias poderosas não têm: o sentimento em ge-

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