Legado sobrevive só no nome
O que chama mais a atenção é o “éthos” burocrático herdado do antigo regime, que ganha contornos kafkianos e pode levar a uma delegacia um turista só pela interpretação que um oficial faz da execução de uma selfie.
Pequenos detalhes traem o Estado onipresente, como a necessidade de reter registros detalhados em caso de hospedagem em hotéis, prática que vem sendo desafiada pelos serviços online de aluguel de apartamentos.
A política emula a antiga realidade do partido único, trocando a sigla comunista pelo Rússia Unida de Putin.
“Antes, nós tínhamos comissários. Agora é a mesma coisa. Tem de ser alguém sancionado por Moscou”, afirma Vladimir Voikov, 55, gerente de um bar em Vladivostok (extremo oriente russo).
A relação de Putin com a herança soviética é ambígua. Ganhou notoriedade sua declaração sobre “a maior catástrofe geopolítica do século 20”, mas ele sempre ressaltou o sofrimento com os efeitos práticos do fim do regime.
O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, defendeu na semana passada o banimento do evento do calendário: “Seria para celebrar o quê?”.
O governo aposta nos cem anos do Exército Vermelho, criado em 1918 e que teve participação épica na Segunda Guerra Mundial. A grande tragédia nacional da invasão nazista de 1941 fala muito mais às famílias russas.
“Todos aqui perderam alguém”, diz o cientista político Konstantin Frolov, que teve os avós mortos durante a ocupação da Belarus.
Houve raros eventos ligados ao centenário da revolução em Moscou. A biblioteca Lênin, por exemplo, trouxe um interessante painel sobre a vida cotidiana em 1917.
O Museu Central Estatal da História Contemporânea Russa, que ocupa o prédio do antigo Museu da Revolução, apresentou uma mostra multimídia bastante modesta.
Putin, visto como um czar do século 21, dirige-se a uma nova reeleição em 2018 querendo evitar referências a movimentos revolucionários.
Como seus antecessores imperiais, o presidente é obcecado pelo temor de dissenso. As “revoluções coloridas” ocorridas a partir dos anos 2000 em vizinhos ex-soviéticos como a antiga Iugoslávia e a Ucrânia são, na versão do Kremlin, golpes patrocinados por estrangeiros. REVOLUÇÃO OU GOLPE Voikov, de Vladivostok, até gosta de Putin, embora o critique. Diz simpatizar mais com os comunistas, mas nega nostalgia da União Soviética e concorda com a historiografia ocidental que classifica a tomada de poder do dia 25 de outubro (7 de novembro no calendário atual) de 1917 como um golpe.
Os bolcheviques eram uma facção minoritária na revolução propriamente dita, ocorrida em fevereiro de 1917 (março pelo calendário atual), quando um conglomerado de aristocratas liberais e socialistas de cores variadas deu um basta aos 300 anos da monarquia dos Romanov.
O estopim foi a penúria causada pela Primeira Guerra Mundial, que drenava o país desde 1914. Suas raízes remontavam ao fracasso estrutural do império, que, desde a revolução abortada de 1905, combinava reformas liberalizantes com feroz repressão.
O terror se espraiava pelo tecido social russo. Estima-se que, nos últimos 20 anos da monarquia, mais de 15 mil pessoas tenham morrido em atentados políticos.
O contraste entre a vida no campo, de padrões feudais, e as metrópoles ocidentalizadas levaram à ascensão de denominações socialistas.
Os bolcheviques, facção minoritária (apesar de o nome significar “majoritário”) do Partido Social-Democrata Trabalhista Russo, eram coadjuvantes até Lênin regressar do exílio em abril de 1917. Seu retorno foi bancado pelos alemães, adversários da Rússia na Guerra Mundial, que em troca pediram a saída do país do conflito —o que ocorreu em 1918.
Revisor radical das ideias de Marx, Lênin aproveitou-se da instabilidade crônica e das divisões internas do governo interino em São Petersburgo, então capital russa.
Havia talvez menos de 10 mil homens sob seu comando, mas o pequeno e disciplinado bando conseguiu tomar o poder das mãos de Aleksandr Kerênski (1881-1970), premiê do país desde julho. VIOLÊNCIA A brutalidade do novo regime tornou-se notória, a começar da dissolução da primeira assembleia eleita após a queda do governo provisório —os bolcheviques perderam no voto para os Socialistas Revolucionários e invocaram ameaça ao sistema soviético.
A violência era “modus operandi”. Se havia o “terror branco”, em reação aos revolucionários, sua versão “vermelha” espalhou horror por toda a Ásia até chegar às margens do Oceano Pacífico, na Vladivostok de Voikov, o último bastião a cair em mãos bolcheviques, em 1922.
Sem parentesco conhecido, Voikov compartilha o sobrenome com um personagem famoso daquela época: Piotr, químico que forneceu o ácido usado para dissolver os corpos da família real após sua execução, em 1918.
O evento é um divisor de águas tão importante quanto os fatos de 1917, pois simboliza a ruptura definitiva entre a velha e a nova ordem durante a Guerra Civil Russa, que destroçou o país e talvez 10 milhões de vidas até 1922.
Num movimento pendular, o czar Nicolau 2º (1868-1918) e sua família hoje são santos da Igreja Ortodoxa rediviva sob Putin.
Durante o período comunista, a religião e a instituição sofreram. Como explica o chefe de comunicação da Igreja Ortodoxa, as dificuldades eram diárias, mas também havia acomodações.
“Existia uma relação com o Estado. Sermões tinham de ser aprovados pela KGB, mas, depois da violência exacerbada dos primeiros anos, quando destruíram igrejas e se apossaram de prédios religiosos, no geral a convivência era pacífica”, diz Vladimir Legoida.
A associação com a igreja e a cooptação de líderes regionais são práticas imperiais repetidas pelo Kremlin, o que leva historiadores como o britânico Orlando Figes a ver uma linha contínua dos Romanov a Putin. O caráter da acomodação citada por Legoida pode apenas ter trocado o sinal, cem anos depois. É o número de mortos deixados pela ditadura, segundo o “Livro Negro do Comunismo” Na década de 1930, Stálin expulsou do partido e do governo seus opositores políticos. A iniciativa incluiu prisões e execuções arbitrárias
FOLHA,
Na Rússia, a identificação como comunista não se traduz necessariamente em filiação —nem mesmo ideológica— ao Partido Comunista da Federação Russa (KPRF).
Vladislav Staroverov, engenheiro, afirma que o partido até tem projetos que pensam nos mais pobres, “mas ainda faz parte da máquina estatal, [endossando] o Rússia Unida, de Vladimir Putin. E o partido de Putin é liberal”.
Staroverov diz que os russos preferem não se declarar comunistas em público, porque a palavra tem carga histórica negativa muito presente e porque as ideias do KPRF se afastaram do marxismo.
O ativista russo Evgeny Belyakov, que também se define como comunista, concorda. “A liderança nacional do KPRF está do lado da Igreja Ortodoxa e tem um discurso anti-imigrante. Eles traíram as ideias comunistas.”
Para ele, a sigla terá de passar por mudanças. “O Partido Comunista ainda é a segunda força política da Rússia, mas, se continuar sem identidade, vai perder o posto”.
Belyakov deposita esperanças de transformação nas novas gerações. “[Os jovens] não estão obrigados a ler Marx, como nossos pais foram. Na verdade, ler Marx é mal visto na Rússia de hoje. Se leem, o interesse é genuíno.”
O historiador brasileiro Rodrigo Ianhez, residente em Moscou, é menos otimista com o futuro do KPRF.