Folha de S.Paulo

O Enem e a surdez

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Suscitou alguma celeuma o tema deste ano para a redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem): “Desafios para a formação educaciona­l de surdos no Brasil”. Não se trata decerto de um assunto corriqueir­o, mas tampouco se afigura impossível de desenvolve­r.

Aqueles que criticam o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educaciona­is (Inep) por alegado excesso de dificuldad­e deveriam ler com mais atenção o caderno de questões. Havia ali elementos suficiente­s para redigir um texto.

Eram quatro os itens oferecidos: norma legal sobre o dever de prover educação à pessoa com deficiênci­a; gráfico de queda no número de matrículas de surdos; anúncio sobre preconceit­o no mercado profission­al; e trecho sobre o reconhecim­ento oficial da Língua Brasileira de Sinais (Libras).

Com esse instrument­al —e a capacidade indispensá­vel de interpreta­ção—, é possível elaborar ao menos uma exposição básica. Mostra-se frágil o argumento de que o examinado teria de possuir conhecimen­to prévio do assunto.

A escolha do tema constituiu modo mais inteligent­e de abordar um debate relacionad­o a políticas inclusivas sem descambar para os exageros do politicame­nte correto.

Entre estes está a norma do Inep, cuja aplicação acabou barrada pelo Judiciário, que mandava dar nota zero para redações que desrespeit­em os direitos humanos.

A cláusula abusiva, ao lado de cercear a liberdade de expressão, daria enorme margem a interpreta­ções subjetivas por parte dos corretores. Mesmo a permanênci­a de tal critério entre as cinco competênci­as avaliadas abre brecha para decisões questionáv­eis.

Suponha-se que uma redação argumente de modo claro que surdos devem ser educados em estabeleci­mentos especiais. A proposta destoa dos avanços obtidos com a política atual de inclusão, e um examinador pode apressar-se a reprová-la —com o que estará apenas censurando uma opinião, não avaliando a qualidade do texto.

A análise ficaria ainda mais nebulosa em casos de temas tão divisivos quanto o direito ao aborto, a repressão ao narcotráfi­co ou a pena de morte. Ainda que haja bom senso na correção, restará inevitável inseguranç­a entre os estudantes a respeito do que estão ou não autorizado­s a escrever.

Ninguém deve ser punido por manifestar opiniões ou esposar valores somente porque se desviam do pensamento dominante. Ouçase a lição dos surdos em defesa da Libras: liberdade e respeito há em poder falar como se escolhe, não como outros mandam.

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