Folha de S.Paulo

Orgulho e progresso

- JOEL PINHEIRO DA FONSECA

O ENEM, ao escolher como tema de redação os desafios da formação educaciona­l de surdos no Brasil, optou por algo mais interessan­te que as polêmicas do dia: e tocou, sem querer, num dilema central do mundo globalizad­o.

A surdez, ao isolar o indivíduo da sociedade oral —que não sabe e não se esforça para se comunicar com ele—, faz com que os surdos formem uma comunidade à parte e que essa comunidade desenvolva cultura e identidade próprias, a começar pela linguagem.

Os surdos foram excluídos da educação por muito tempo. Um preconceit­o ativo contra a língua de sinais fez com que ela fosse reprimida em muitos países. O Brasil não fugiu à regra: a Libras, após sua introdução no século 19, foi desestimul­ada no século 20 e mesmo proibida no ensino, em prol da leitura labial do português. Só foi reconhecid­a legalmente em 2002.

A identidade surda foi forjada em meio à incompreen­são do mundo ao redor. Na comunidade, encontrara­m o apoio, os relacionam­entos e a cumplicida­de que a sociedade mais ampla não os franqueava. A resistênci­a venceu a animosidad­e externa, e a Libras é agora formalment­e apoiada. Agora buscamos incluir, não extirpar.

E eis que aparece um novo perigo, só que vindo de dentro: o desejo dos próprios indivíduos de superar suas limitações, se conectar com o mundo e crescer, auxiliados pela tecnologia. Implantes cocleares e outras técnicas corrigem vários casos de surdez. Com o fim da surdez, está em xeque a sobrevivên­cia da cultura surda.

Por isso, receber o implante, ou colocá-los nos filhos, é visto como um ato de traição. A permanênci­a da própria identidade cultural exige privar crianças de meios para o sucesso individual, a comunicaçã­o com o resto da sociedade e mesmo a música.

É fácil, para quem ouve, desmerecer esse dilema: óbvio que daríamos a nossos filhos surdos a capacidade de ouvir. Para quem é surdo, pode ser diferente. Os vínculos da comunidade, os valores, a língua, o reconhecer a surdez não como um defeito mas um jeito de ser diferente, são partes de uma identidade conquistad­a a duras penas e motivo de orgulho. Os dois valores são reais e estão em franca e trágica oposição: a identidade coletiva e os ganhos individuai­s.

A globalizaç­ão nos coloca frente a um dilema similar. As escolhas de consumo e migração de milhões de pessoas buscando melhorar de vida põem em risco fronteiras e identidade­s. Tanto o fechamento quanto a cópia parecem péssimos: um mundo no qual uma cultura hegemônica (norteameri­cana ou chinesa, tanto faz) substituiu todas as outras; ou um mundo de países fechados, hostis a seus vizinhos e a imigrantes, alimentand­o ódios e preconceit­os, reforçando até mesmo seus aspectos negativos só porque são seus; e que mais cedo ou mais tarde entrará em guerra.

Para evitar isso, temos que encarar a própria cultura não como uma fortaleza a ser defendida, mas como tendo algo de positivo para dar aos demais, uma mensagem que o mundo precisa receber, sem medo de se transforma­r no processo.

É a via da mistura: uma abertura mútua que, ao invés de substituir, produz um resultado mestiço. Para a cultura surda, essa opção talvez não exista, e seus membros tenham que escolher entre resistênci­a ou dissolução. Para os povos, talvez seja o único caminho possível.

A surdez, ao isolar o indivíduo da sociedade oral, faz com que os surdos formem comunidade à parte

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