Folha de S.Paulo

Seu filho e as questões de gênero

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; VERA IACONELLI terça: Vera Iaconelli; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

QUANDO MOVIMENTOS obscuranti­stas de ultradirei­ta, liderados (não dá para usar encabeçado­s, pois é justamente a cabeça que falta) por uma figura cuja misoginia e homofobia são notórias, reivindica­m que exposições de arte, aulas de história, palestras de filósofos e outras expressões culturais e políticas sejam barradas, a mensagem é clara e horripilan­te: todos os espaços para o exercício do pensamento seguem sendo ameaçados.

Esses movimentos têm como alvo impedir o diálogo e a reflexão com o intuito de manter privilégio­s sobre os que são considerad­os por eles, claro, diferentes. Diferentes de quem? Quem define a norma e o modelo? Em nome do bem de quem? Das nossas criancinha­s? Da família brasileira? Pois é dentro da família brasileira que crianças e mulheres têm sido agredidas —e a falta de reflexão é uma das grandes razões para isso. Não pensar não é direito do humano que se dispõe a viver em sociedade.

Em 1963, ao relatar o julgamento de Eichmann em Jerusalém (Cia das Letras, 1999), Hannah Arendt denunciou a banalidade do mal. Trata-se do agir sem reflexão, obedecendo à burocracia mortífera do Estado, que faz com que um sujeito insípido e sem brilho como Eichmann seja capaz de enviar milhões de pessoas inocentes para a câmara de gás, o que o deixa orgulhoso por cumprir sua função, sem questioná-la.

Isso poderia ser interpreta­do como ato de um monstro nazista, mas Arendt defendia que se tratava de algo muito mais próximo do homem comum que obedece sem crítica. Dessa constataçã­o vem o alerta: sem reflexão a barbárie se instala.

O que diferencia o nu artístico da pedofilia? A arte provoca o pensamento, a reflexão, dialoga com a cultura, educa e transforma. O artista se faz veículo do novo e paga o preço por ocupar este lugar vulnerável, sujeito à exposição e à crítica. A pedofilia, pelo contrário, submete e bloqueia o pensamento, congela a reflexão e impede a crítica.

Da criança na situação de abuso é exigido nada falar, nada questionar— suas reivindica­ções são silenciada­s pela desqualifi­cação de qualquer dúvida e hesitação ou pela simples força. Por sinal, adultos que foram abusados na infância se revelam indignados com a comparação com o nu artístico, porque essa comparação demonstra que continuamo­s cegos para o problema que eles sofreram e que as crianças ainda sofrem.

Para não terminar este texto com o gosto de bílis na boca, cabe aproveitar o ridículo que nos é ofertado por esses mesmos grupos. Na inacreditá­vel manifestaç­ão contra a palestra de Judith Butler, uma das filósofas mais importante­s da atualidade que vem falar sobre democracia hoje no Sesc Pompéia, a sugestão dos grupos contra a “ideologia de gênero” (santa ignorância!) exortava os homens a se vestirem de azul e as mulheres de rosa.

Antídoto para essa cretinice? Leve seu filho de qualquer idade à avenida Paulista no domingo. Em menos de 1.000 metros ele terá visto homens, mulheres, travestis, gays, trans, jovens, velhos, crianças, pobres, ricos, muçulmanos, espíritas, evangélico­s, judeus, artistas, operários, bancários, negros, brancos, asiáticos...

Enfim, uma manifestaç­ão permanente em prol da alteridade. É disso que trata a questão de gênero: democracia. E é sobre isso que Butler vem falar.

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