Folha de S.Paulo

Cérebros criminosos

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Ao longo da história, o direito se beneficiou da ciência. Avanços no campo da patologia, da balística e de outras disciplina­s com aplicação forense, bem como o surgimento de técnicas como a identifica­ção por fragmentos de DNA, há muitas décadas ajudam autoridade­s a investigar o crime e a instruir com mais rigor os processos.

Até desenvolvi­mentos da matemática, em particular a teoria dos jogos, têm azeitado as engrenagen­s da Justiça, como se vê na crescente utilização certeira do mecanismo das delações premiadas.

A ciência, entretanto, flerta com uma pequena revolução que pode não ser tão amigável ao direito.

Conforme noticiou esta Folha, cada vez mais estudiosos tentam compreende­r as relações entre caracterís­ticas do cérebro e propensão à violência —e eles estão mais próximos de obter respostas.

Já se sabe, por exemplo, que o tamanho do córtex pré-frontal está relacionad­o ao controle do impulso, que é menor nas personalid­ades violentas. Já se encontrara­m também correlaçõe­s entre o tamanho da amígdala e a psicopatia.

Há casos documentad­os de crimes sexuais desencadea­dos por tumores cerebrais, sem mencionar alguns tipos de demência que tornam seus portadores frequentad­ores habituais de delegacias.

Não parece impossível vislumbrar um futuro em que esse conhecimen­to tenha avançado tanto que se possam identifica­r causas orgânicas a estimular boa parcela das condutas condenávei­s.

O desdobrame­nto de tal cenário, como já se pode antecipar, é um abalo em alguns dos pilares que amparam as normas punitivas. Afinal, a maioria dos sistemas jurídicos adota o pressupost­o de que pessoas são agentes morais dotados de livre-arbítrio.

Em muitos casos, só se tipifica um crime como tal quando se demonstra a intenção expressa de delinquir; em outros, a ausência de dolo implica penas menores.

Quanto mais um comportame­nto violento for associado a alterações funcionais do cérebro, menos sentido fará a distinção entre dolo e culpa. Numa hipótese extrema, alguns sistemas nervosos seriam tão vulnerávei­s a determinad­os estímulos ambientais que não teriam como resistir a eles.

Como se não bastasse, não são poucos os neurocient­istas e filósofos que contestam até mesmo a noção de livre-arbítrio, sem a qual pouco do direito permanece de pé.

Esse debate já se encontra em curso. A sociedade, em particular legislador­es e juristas, deve se preparar para os novos entendimen­tos que dele poderão decorrer. RIO DE JANEIRO -

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