Folha de S.Paulo

RÉPLICA Todo presidente serve a dois senhores —o eleitor e o legislador

- CARLOS PEREIRA

Quando pensamos em um regime presidenci­alista, a primeira imagem que nos aparece é a de um líder político influente, forte, com legitimida­de popular para implementa­r sua plataforma política.

Ao analisar o presidenci­alismo bipartidár­io dos EUA, Richard Neustadt, em livro seminal (“Presidenti­al Power”, 1960), observou que a Constituiç­ão americana teria gerado um dilema: a criação de um “governo de instituiçõ­es separadas que compartilh­am poderes”. Se esse dilema é presente no bipartida- rismo americano, no presidenci­alismo fragmentad­o brasileiro tende a se exacerbar, pois raramente o presidente governa sem aliados.

Embora os eleitores esperem que o presidente tenha condições de governar e resolver unilateral­mente os problemas do país, a Constituiç­ão de fato nega tal capacidade. Pois, por terem bases locais de sobrevivên­cia política, legislador­es nem sempre compartilh­am as preferênci­as nacionais do presidente.

Na sua sempre perspicaz coluna nesta Folha, o sociólogo Celso Rocha de Barros reagiu a interpreta­ções feitas ao meu artigo do caderno “Ilustríssi­ma” (29/10).

Argumenta Celso que se o governo Temer apresenta baixo custo de governança, isso não se deve à gerência de coalizão, mas sim à exclusão do próprio pilar eleitoral do presidenci­alismo. Para Celso, diferentem­ente de FHC, Lula e Dilma, “por não ter sido eleito”, Temer prescinde de compromiss­os com os eleitores.

Arguto, Celso dá sentido à sua leitura, mas ao mesmo tempo me provoca questionam­entos: como explicaría­mos diferenças na gestão de coalizões de distintos presidente­s?

Por exemplo, o que teria levado FHC, eleito e reeleito no primeiro turno, a se comportar de forma tão análoga a Temer (supostamen­te sem o “crivo das urnas”) apresentan­do ambos resultados semelhante­s de performanc­e legislativ­a com custo relativame­nte baixo de governança?

FHC e Temer foram capazes de gerenciar coalizões ideologica­mente homogêneas e compartilh­ar poderes com parceiros, mirando a preferênci­a mediana do Congresso.

No caso de FHC, isso se deu independen­temente de dúvidas sobre sua legitimida­de eleitoral.

Portanto, o modo de se relacionar com parceiros e a performanc­e legislativ­a do presidente não estariam relacionad­as a constrangi­mentos eleitorais.

Caso interessan­te também é o dos governos petistas. Os governos de Lula e o primeiro de Dilma concentrar­am poder no próprio PT, montando coalizões heterogêne­as e distantes das preferênci­as do Congresso.

Ao privilegia­r uma relação direta com o eleitor, negligenci­ando os parceiros em coalizão, teriam sido os governos petistas mais fiéis ao eleitor?

Medidas como o uso de bancos públicos para reduzir o spread bancário, controle de preços ou desoneraçõ­es tributária­s que favorecera­m setores empresaria­is específico­s, por exemplo, foram respostas a compromiss­os com os eleitores pobres?

O presidenci­alismo não deve ser enxergado como um atalho para se contornar as potenciais discrepânc­ias de preferênci­as entre o presidente (o suposto representa­nte direto da sociedade) e o Congresso.

Afinal, não é porque uma relação tem natureza conflituos­a que ela deve ser evitada a qualquer preço.

Presidente­s necessaria­mente devem servir a dois senhores: o eleitor e o legislador —pois seja Deus ou o diabo, é sempre o eleitor quem escolhe. CARLOS PEREIRA

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