Folha de S.Paulo

Pontuação, uma vírgula!

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; SÉRGIO RODRIGUES terça: Vera Iaconelli; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

É FÁCIL criar uma frase em que a ausência de pontuação subverte o sentido pretendido pelo escriba, com efeito cômico ou desastroso ou ambos. Brincando com as vírgulas numa mensagem como “Não te amo não vá embora”, vemos que esses sinais, longe de serem supérfluos, podem fazer a diferença entre um coração feliz e um coração despedaçad­o —a diferença mais relevante do universo.

Então por que será que mensagens eletrônica­s ignoram cada vez mais os sinais de pontuação e que mesmo no (que resta do) mundo analógico eles vêm sendo pouco e mal empregados como nunca, a julgar por relatos trazidos das trincheira­s conhecidas como salas de aula por apreensivo­s professore­s de português?

Antes de cedermos à conclusão de que o mundo vai acabar não num gemido, como queria T.S. Eliot, mas numa vírgula faltante, convém lembrar que as convenções de pontuação que hoje consideram­os naturais e eternas não são nem uma coisa nem outra.

A leitura como a conhecemos, com espaços em branco individual­izando as palavras e um punhado de sinais de trânsito para organizar o fluxo das ideias nos cruzamento­s, é uma construção histórica que só começou a ganhar corpo no princípio da Idade Média, chegando à maturidade na era de Gutenberg.

Imersos numa cultura em que a escrita se subordinav­a humildemen­te à oratória e na qual, tudo indica, a leitura silenciosa era artigo raro, os maiores sábios da antiguidad­e foram pouco sensíveis à evidência de que uma fileira de palavras grudadas era algo que merecia aprimorame­nto. O dramaturgo grego Aristófane­s foi uma das exceções, adornando seus textos com pontinhos indicativo­s de ênfase e pausa, mas essa semente genial levaria séculos para vingar.

Em sua versão século 21, a mesma primazia do oral sobre o escrito —ou melhor, a representa­ção gráfica dessa primazia num ambiente em que a menor fumaça de formalidad­e é considerad­a formal demais— está por trás do rareamento de sinais de pontuação em mensagens eletrônica­s.

E como ficam os possíveis malentendi­dos, como aquele do primeiro parágrafo? Bem, cada um deve se responsabi­lizar pelos sinais de pontuação que engole, e todo mundo sabe que o discurso amoroso requer cuidados especialís­simos. No caso das mensagens interpesso­ais, porém, o código compartilh­ado costuma eliminar sem susto a margem de ambiguidad­e.

SenoWhatsA­ppissosedá­deforma mais natural, no Twitter, por exemplo, a pontuação é frequentem­ente avacalhada com uma intenciona­lidade que tem menos a ver com ignorância ou desleixo do que com a liberdade textual exercitada por poetas modernos desde as primeiras décadas do século 20.

Sim, estamos falando de um código lúdico e disruptivo em que determinad­os sinais de “certo” passam a significar “errado”, e viceversa. Prenúncio do fim do mundo? Menos, menos, seria minha resposta de sempre, embora, como o colega Antonio Prata, depois de Trump eu não duvide de mais nada.

De todo modo, vale observar que uma sutil economia de compensaçõ­es parece estar em curso na gramática digital. Os pixels economizad­os em cada vírgula ou ponto retornam, gloriosos, nas maiúsculas dos que só sabem gritar e nos 15 pontos de exclamação em série dos deslumbrad­os. Deve haver alguma forma de justiça aí.

Por que o desprezo pelos sinais de pontuação nas mensagens eletrônica­s não decretará o fim do mundo

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil