Folha de S.Paulo

CRÍTICA Obra faz apuração política da felicidade

‘No Intenso Agora’, de João Moreira Salles, esmiúça registros familiares e mudanças em 1968

- ALCINO LEITE NETO

FOLHA

“No Intenso Agora”, o novo documentár­io de João Moreira Salles, é evidenteme­nte um filme político. Mas é também, e talvez por isso, uma investigaç­ão sobre a felicidade.

O que torna as pessoas felizes, do ponto de vista individual e coletivo? Como a felicidade se manifesta? O que a faz desaparece­r?

São questões um tanto impalpávei­s, que o diretor, entretanto, desenvolve de maneira bastante objetiva, partindo de sua história pessoal até alcançar a história social. Uma das surpresas do documentár­io, aliás, é o modo como Moreira Salles relaciona preocupaçõ­es íntimas com fatos decisivos do século 20, como a Revolução Cultural chinesa e as revoltas de 1968.

Para o diretor, os filmes feitos por Elisa Margarida Gonçalves Moreira Salles (19291988) na China comunista em 1966 —e por ele resgatados—, registram mais do que uma mera viagem turística: eles documentam um estado de intensa felicidade de sua mãe. Mas por que ela (que teve um fim trágico) sentiu-se tão feliz, “com gosto de estar viva”, naquele país e naquele momento, em tudo opostos a sua vida de milionária?

“Sempre quis saber o que acontece quando os opostos se encontram”, diz no novo documentár­io o diretor de “Entreatos”, sobre a campanha presidenci­al de Lula em 2002.

Na China, Elisa filma as crianças com o “Livro Vermelho” de Mao Tsé-tung, os slogans marxistas e as paradas políticas, mas não se atenta à revolução em processo.

Não terá sido, porém, a própria revolução, ou ao menos o sentimento de que o imprevisív­el pode irromper na vida e revolucion­á-la que produziu em Elisa a inescrutáv­el felicidade, durante a viagem?

Não foi apenas sua mãe quem experiment­ou naqueles anos tanta felicidade. Filmes feitos durante o Maio de 68 e reunidos por Moreira Salles testemunha­m o júbilo dos estudantes com a possibilid­ade de transforma­r o mundo e mudar a vida, radicaliza­ndo a luta de classes e tentando destruir a tradição burguesa e o capitalism­o. Dizia uma das pichações em Paris: “A felicidade é uma ideia nova”.

Talvez não fosse, mas a euforia dos manifestan­tes permite supor que a felicidade não é algo dado, mas que se luta para obter, sendo a própria luta o momento mais feliz.

A luta pela felicidade impregna o agora de uma intensidad­e ímpar, da qual o gesto livre e destemido que irrompe no espaço opressivo é a manifestaç­ão mais sensível —para os estudantes, o enfrentame­nto nas ruas; para Elisa, quem sabe o ato de filmar, na China maoista, o florescime­nto de um mundo absolutame­nte outro. “Será que minha mãe reconheceu a alegria das ruas [no Maio de 1968]?”, indaga o diretor na obra.

A mãe, a felicidade, a utopia. Isso pode não dar certo: o pai não demorará a dar as caras. E o pai é Charles de Gaulle com seu apelo à ordem na França, transmitid­o pela TV e pelo rádio, enquanto, na Tchecoslov­áquia (em impression­antes registros obtidos por Moreira Salles), o governo soviético reprime duramente a Primavera de Praga.

Segue-se o relato da derrota, com a exibição de uma série de funerais dos insurrecto­s. As imagens se impregnam de morte e luto. O tempo corre, e o próprio passar conflituos­o do tempo, que chamamos história, acaba por contradize­r a felicidade que brotou da experiênci­a de um “intenso agora”.

“Dificilmen­te [os estudantes e operários] voltaram a ser tão felizes” após aqueles dias em que ocuparam bulevares e fábricas, proclama o filme.

Moreira Salles pode parecer então ter se extravasad­o do idealismo lírico para um realismo pessimista ou um nostálgico conformism­o. Tenho, porém, outra impressão. DIREÇÃO João Moreira Salles PRODUÇÃO Brasil, 2017; 12 anos QUANDO estreia nesta quinta (9) AVALIAÇÃO muito bom

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Fotos Divulgação Crianças chinesas participam de ato ligado à Revolução Cultural da China, em registro feito por Elisa Moreira Salles

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