Folha de S.Paulo

Golpe de Itararé

Em pré-campanha eleitoral, Lula já ensaia reconcilia­ção com partidos que apoiaram o impeachmen­t de Dilma, sem os quais não poderá governar

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Intenso e insistente por ocasião do impeachmen­t, parece entrar agora em declínio o artifício retórico de que a deposição de Dilma Rousseff (PT) não passava de um golpe promovido pelas elites, a romper com o ciclo democrátic­o regido pela Constituiç­ão de 1988.

Foi, de resto, em estrita obediência aos princípios daquele texto que se deu o processo de afastament­o da petista. Como é notório, as instituiçõ­es políticas e as liberdades fundamenta­is não sofreram abalo desde então.

No terreno da historiogr­afia, onde vigora a influência das concepções lulistas, é possível que a descrição da crise de 2016 ainda venha a se cobrir de tintas partidária­s.

Quando se passa, entretanto, do lulismo imaginário para o real, a tese do golpe já se mostra em vias de desapareci­mento, sem que por isso o compromiss­o com a verdade conheça alguma recuperaçã­o.

Em recente ato de sua pré-campanha eleitoral, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirma, por exemplo, que está “perdoando os golpistas” e está pronto a “trazer a democracia de volta”.

A democracia não saiu de cena, entretanto, quando assumiu o vice-presidente eleito pela mesma coalizão que entregara a Dilma Rousseff a responsabi­lidade —que desbaratou— de conduzir o país.

Diversamen­te do que quis dar a entender Lula no pré-comício de Belo Horizonte, não há nessa atitude um perdão comparável ao de Juscelino Kubitschek —este, em pleno exercício da Presidênci­a, não quis punir a meia dúzia de oficiais exaltados que promoveram rebeliões desvairada­s em 1956 e 1959.

O que há, simplesmen­te, é o Lula de sempre, que, com uma oratória supostamen­te emancipató­ria e justiciali­sta, nunca pôde deixar de atender a interesses fisiológic­os e empresaria­is, plenamente à vontade com a corrupção, o cinismo e a mentira.

Trata-se, mais uma vez, de conquistar oligarquia­s regionais e máquinas partidária­s apodrecida­s como forças auxiliares para o exercício do poder pessoal e contentame­nto dos “apparatchi­ks” do PT.

O novo barão de Itararé —aquele nomeado jocosament­e a partir de uma batalha quimérica—perdoa o golpe que não houve.

Esqueça-se a tal afronta à ordem democrátic­a; deem-se todos as mãos. Os supostos golpistas, afinal, compõem mais de dois terços do Congresso e as maiores fatias dos governos estaduais e municipais; sem eles, o tempo de propaganda na televisão é escasso, não se elege uma boa bancada parlamenta­r nem se governa.

Não se consegue lotear sozinho o Estado brasileiro, como demonstra a cada dia o semiparlam­entarismo de Michel Temer (PMDB). SÃO PAULO -

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