Folha de S.Paulo

Autores e obras

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Pessoas ruins podem fazer coisas boas? O “Zeitgeist” parece indicar que não. Kevin Spacey, protagonis­ta da série “House of Cards”, acaba de ficar sem emprego, porque a Netflix resolveu suspender suas aparições depois que ator foi acusado de ser uma espécie de predador sexual gay.

Na mesma semana, feministas organizara­m em Paris uma manifestaç­ão em que pediam que a Cinemateca desistisse de exibir uma mostra de filmes do diretor Roman Polanski. Motivo? Polanski é acusado de estupros de menores nos EUA (onde ele é considerad­o foragido da Justiça) e também na França.

Assédio sexual e estupro são não só atos imorais como também crimes, mas a pergunta que proponho é outra: a vida pessoal de um artista ou pensador afeta sua obra?

O melhor exemplo talvez seja o de Heidegger. O filósofo alemão engrossou as fileiras do NSDAP, o partido nazista, ocupou uma reitoria de universida­de sob Hitler e jamais fez um “mea culpa” disso mesmo tendo morrido apenas em 1976. Devemos, por causa desse passado altamente problemáti­co, desprezar ou diminuir o valor da produção filosófica de Heidegger? A resposta me parece claramente negativa.

No plano psicológic­o individual talvez seja impossível deixar de fazêlo. O sobreviven­te de Auschwitz tem todos os motivos para nem querer ler Heidegger. Mas, ao menos idealmente, é preciso separar o autor da obra, porque, como diz Caetano Veloso, de perto ninguém é normal. Se só aceitarmos obras e teorias de quem exiba uma biografia exemplar, nos veremos em sérias dificuldad­es. No limite, até a teoria da relativida­de deveria ser rejeitada, já que Albert Einstein, embora tenha se tornado o emblema mesmo do sábio ético, foi um péssimo marido e um pai não muito bom.

Sem prejuízo de punições por eventuais crimes, precisamos reaprender a separar autores maus de suas obras, que podem ser boas. helio@uol.com.br

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