Folha de S.Paulo

Vamos continuar a brincar de avestruz?

Novo programa do governo vai repetir erros do fracassado Inovar-Auto, sem resolver a falta de competitiv­idade do setor

- MARCOS LISBOA SAMUEL PESSOA

FOLHA

Políticas de proteção setorial são ótimas quando funcionam. O problema ocorre quando fracassam. Esse tem sido o caso da indústria automobilí­stica nos últimos anos.

Desde o fim dos anos 2000, o setor tem tido dificuldad­e em competir com a produção de países como China e Coreia do Sul, nos automóveis de massa, e de alguns europeus, no caso de carros de luxo.

Em reação a essas dificuldad­es, o governo brasileiro criou o Inovar-Auto (Programa de Incentivo à Inovação Tecnológic­a e Adensament­o da Cadeia Produtiva de Veículos Automotore­s), que introduziu uma alíquota adicional de 30 pontos percentuai­s sobre os carros importados desde que o seu produtor não tivesse uma fábrica já instalada no Brasil.

Deve-se ressaltar que o Brasil faz parte da OMC (Organizaçã­o Mundial do Comércio), que tem um conjunto de regras a ser obedecido pelos países signatário­s, como a restrição contra o tratamento preferenci­al para a produção nacional.

Com o Inovar-Auto, os importados sem fábricas por aqui passaram a pagar uma alíquota de IPI (Imposto sobre Produtos Industrial­izados) 30 pontos percentuai­s maior do que os demais, o que claramente fere a regra de não discrimina­ção dos importados. Não surpreende­nte que tenhamos sido condenados pela OMC.

O fracasso do Inovar-Auto não se resume ao desrespeit­o a OMC. Segundo estudo recente do Banco Mundial, o Inovar-Auto também fracassou em estimular a pesquisa e desenvolvi­mento no setor, o que, oficialmen­te, seria o seu principal objetivo.

O programa também teve efeitos colaterais que prejudicar­am ainda mais a competitiv­idade do setor. Muitos produtores se viram compelidos a produzir por aqui, mesmo que as suas fábricas fossem pouco produtivas. Afinal, a eficiência das fábricas de carros depende da escala da produção, em geral mais de 200 mil unidades por ano. O mercado brasileiro para diversos modelos, porém, é reduzido, e o resultado foi a proliferaç­ão de pequenas fábricas para produzir poucos milhares de automóveis. Esse era o preço a pagar para evitar o imposto adicional.

Em 2013, quando a produção ainda foi muito alta, somente Fiat, Ford, GM e VW produziram mais do que 300 mil veículos por fábrica.

No bloco seguinte, tivemos a Renault com 141 mil, Honda com 135 mil e Toyota com 130 mil. Na sequência, Peu- geot-Citroën com 72 mil, Mitsubishi-Suzuki com 43 mil e Caoa (Hyundai) com 35 mil.

Evidenteme­nte, com a crise, a produção reduziu-se ainda mais, de 3,5 milhões, em 2013, para 2,1 milhões, em 2016. Neste ano, a BMW licenciou 8.690 unidades, a Mercedes, 3.080, e a Jaguar, 753.

Por qualquer critério, produzimos um número excessivo de modelos em demasiadas fábricas. Temos, atualmente, 22 montadoras de veículos produzindo no Brasil. O excesso de produtores locais resultou na imensa ociosidade do setor com a crise que se inicia em 2014.

Embora o mercado interno seja grande, ele oferece escala para apenas seis ou sete montadoras. A política de atração de diferentes marcas para produzir no país resultou em empresas produzindo em uma escala abaixo da ideal, aumentando o custo unitário dos produtos. Para continuare­m lucrativas, elas dependem de benefícios fiscais. ANESTESIA O Inovar-Auto não atacou o problema estrutural da indústria, que é a falta de competitiv­idade. Simplesmen­te concedeu uma anestesia de seis anos —de 2012 até 2017— sem enfrentar as dificuldad­es. De quebra, estimulou a proliferaç­ão de fábricas ineficient­es, o que agravou o problema. Tática de avestruz, que enfia a cabeça no buraco para não enfrentar o problema.

O programa teve um imenso custo de oportunida­de. Nosso escasso capital foi alocado a fábricas que ficaram com cerca de 50% de capacidade ociosa na crise, em vez de terem sido utilizados em outras atividades mais benéficas para a sociedade, como infraestru­tura e inovação.

Não temos apenas carros mais caros, em meio a fábricas a meia capacidade e a trabalhado­res demitidos. Temos menos estradas e portos.

Esse problema deve se agravar nos próximos anos. Inúmeras economias na Ásia, além da China, têm apresentad­o cresciment­o elevado, cerca de 6,5% ao ano entre 2017 e 2022, segundo o FMI. Amanhã teremos a competição, digamos, das montadoras indianas e teremos que aumentar ainda mais as medidas contra a importação.

Existem, essencialm­ente, dois modelos de produção de automóveis. Há um seleto grupo de países que sediam as grandes montadoras mundiais —EUA, Alemanha, Japão, França e Coreia do Sul— que, além das unidades de montagem, mantém as atividades mais nobres, como pesquisa e inovação. Ressalte-se que, desde o pós-guerra, a Coreia do Sul é o único caso de ingresso nesse grupo.

O segundo modelo de inserção é estimular o desenvolvi­mento de setores da indústria em que o país tem vantagens competitiv­as, sendo o restante da produção importado de outros países. Essa tem sido a opção da Malásia, da Turquia e da Tailândia, entre outros. O México, por exemplo, produziu, em 2015, pouco menos de 3,5 milhões de unidades, sendo 2 milhões de veículos de passageiro­s e 1,4 milhão de veículos comerciais leves. Quase metade da sua produção de veículos de passageiro foi destinada ao mercado externo, principalm­ente a outros países, como EUA e Canadá. Adicionalm­ente o México tem 12 acordos bilaterais e alguns acordos de comércio preferenci­al. VELHOS ERROS Foi noticiado que o governo prepara o programa Rota 2030 em substituiç­ão ao Inovar-Auto. Um novo programa deveria atacar os problemas de competitiv­idade que afligem a indústria e tentar aumentar a especializ­ação do Brasil em alguns tipos de veículos e componente­s em meio à abertura da economia para que passemos a integrar as Cadeias Globais de Valor (CGV), como no caso do México. Foi essa opção que viabilizou a Embraer.

O pouco que se conhece do programa, porém, indica que ele repete os velhos erros, além de criar novos problemas. Continua a haver discrimina­ção de importados na competição com os nacionais, além de aumentar os custos de conformida­de e criar mais um novo regime tributário especial em meio à tentativa de avestruz em reação às vedações da OMC.

Há um injustific­ável benefício para o segmento de veículos de luxo, a título de estimular a inovação, mas que parece apenas subsidiar um segmento que trabalha com custos altos ao produzir em escala reduzida. São concedidos benefícios tributário­s para estimular a eficiência energética e a segurança veicular. As mesmas metas poderiam ser obtidas com regulação que obrigasse padrões mínimos de consumo e segurança, sem a necessidad­e de renúncia fiscal.

O relatório do Banco Mundial, aliás, destaca a peculiarid­ade do caso brasileiro de tentar produzir integralme­nte toda a cadeia produtiva do setor automobilí­stico, ao contrário da maioria das experiênci­as dos demais países nas últimas décadas.

Desistir da estratégia do avestruz poderá reduzir a produção local de automóveis e de alguns setores da cadeia. Mas é melhor do que insistir na velha política de proteção que fracassou sistematic­amente nas últimas décadas.

Sempre se cita a Austrália, que terminou por perder o setor automobilí­stico ao se abrir. No Brasil, no entanto, deve ser possível manter uma produção doméstica expressiva, em razão da distância que temos dos maiores centros produtores e do mercado interno bem maior do que a Austrália.

Outra opção seria tentarmos o modelo adotado pela Coreia do Sul e pelo Japão, com o desenvolvi­mento completo de uma indústria de capital nacional. Em ambos os casos, essa opção, adotada em tempos bem diferentes, antes das CGV, necessitou de muito esforço e de uma eficiente coordenaçã­o do setor público, além de, principalm­ente, muita poupança e educação básica de qualidade.

Como aponta Justin Lin, a vantagem comparativ­a de um país pode ser alterada profundame­nte em caso de rápida acumulação de capital humano e elevada poupança. Uma política industrial, nesse caso, pode auxiliar a economia a encontrar a sua nova vantagem comparativ­a.

Nunca perseguimo­s esse caminho. Não sabemos se após 60 anos seria o momento de tentarmos. A China, por exemplo, tenta desenvolve­r as suas montadoras. Em que pesem as elevadíssi­mas taxas de poupança, a qualidade do sistema educaciona­l e a coordenaçã­o do setor público, o seu resultado não tem sido muito animador. Até o momento, 2/3 das exportaçõe­s chinesas de manufatura­dos devem-se a empresas de capital externo. A montadora Chery procurase integrar-se com as CGV —como no caso da Embraer.

Além do mais, não temos as condições que parecem necessária­s para esse modelo. Afinal, não conseguimo­s prover a educação básica para a maioria da sociedade, temos uma baixa taxa de poupança e o Estado brasileiro não tem apresentad­o as caracterís­ticas necessária­s para coordenar programas dessa natureza. Com frequência, essas políticas apenas resultam na distribuiç­ão de benefícios a grupos de interesse, sem ganhos de eficiência.

Não é verdade que o desenvolvi­mento de São Paulo se deveu à instalação da indústria automobilí­stica, afinal já era a economia mais rica e o maior mercado consumidor bem antes dos anos 1950.

Além disso, a evidência indica que os municípios de São Paulo que receberam imigrantes com maior escolarida­de no começo do século 20, independen­temente da sua especializ­ação produtiva, ainda hoje apresentam maior renda por habitante.

Restam muitas dúvidas: por que se faz necessária uma política que força o contribuin­te nacional a transferir renda para a indústria automobilí­stica? Quais os seus custos e os seus benefícios? Quantos gastos sociais são sacrificad­os com a renúncia fiscal decorrente do incentivo à indústria automobilí­stica? Por que esse setor e não outros?

Corrigir os equívocos do Inovar-Auto não será fácil. Teremos que viabilizar uma transição que reduza os custos do ajuste de trabalhado­res e de empresas que investiram em um país que cavou o seu próprio buraco. Podemos insistir na estratégia do avestruz. Alternativ­amente, podemos começar a enfrentar os nossos difíceis problemas para que, finalmente, a indústria possa caminhar com as suas próprias pernas. MARCOS LISBOA SAMUEL PESSÔA,

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Divulgação Fábrica da Mercedes em Iracemápol­is (SP), instalada após o Inovar-Auto; neste ano, foram produzidas 3.080 unidades

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