Folha de S.Paulo

Mas paga? Ai, que vergonha!

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; TATI BERNARDI terça: Vera Iaconelli; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

ENQUANTO ASSISTIMOS, enojados, a essa infinidade de políticos canalhas (e cada montante desviado superando o que oito gerações da minha família não conseguira­m com trabalho honesto), convivo em meu micromundo, em minha bolha zona oeste, com pessoas envaidecid­as em simbolizar o extremo oposto: elas odeiam dinheiro.

De quem só levanta da cama pensando em enriquecer, principalm­ente de forma ilícita, tenho asco. Mas o que sentir por esses filhos perdidos de hippies ricos que acordam duas da tarde e destratam os amigos raladores se achando especiais demais para ter um salário? Chef de cozinha (com sete anos de aprendizad­o na Europa bancado pela família) que não visa o lucro, mas sim o prazer de servir o soberano combustíve­l da existência! Pode esperar que um dia terão de pagar o próprio plano médico e acabarão abrindo filial em shopping.

Um ex-professor vive me dando esporro porque sirvo à demoníaca TV e recentemen­te se gabou de labutar sete meses traduzindo um clássico de 500 páginas: “Dá uns três paus, mas eu faria de graça!”. Ficamos em silêncio brutal. A sala inundada pela luxúria reversa em não pagar impostos, não ajudar a mulher nas contas da casa, não poder comprar um livro usado pro filho. Viva o verdadeiro artista!

Eles não trabalham em troca de cifras. Arte real não transa capitalism­o. São pessoas iluminadas, que expõem a alma com o preço nas telas torcendo pra que nunca, jamais, alguém decida dar limites numéricos para um espírito tão grandioso. Reclamam de como é dura a vida, pedem pra você pagar o jantar que na próxima eles pagam, seguem morando há 20 anos no mesmo microapê todo cagado de problemas, banheiro sem reforma desde que a vovó que morava ali era uma jovenzinha com bobes no cabelo. É a pureza do sonho adolescent­e num corpo que já já faz exame de próstata. E o que acham de quem nutre um lar trabalhand­o com cinema, literatura...? Uns vendidos, além de pouco talentosos! Experiment­e ENCOMENDAR um lancezinho deles. Uma música. Uma pensata de cinco linhas. Prazo e pagamento são as palavras que os enterram em quartos escuros.

Almocei com uma “garota” (38 anos) querendo ser minha assistente. Filha, neta, bisneta e tataraneta de intelectua­is quatrocent­ões, estava no quarto mestrado e acreditava ter chegado a hora de “começar”. O orgulho que sentia de jamais ter trocado sua genialidad­e e sabedoria por imundas notas, encharcand­olhe a língua como se somente a ela tivesse sido dado um caráter raríssimo, me contava instantane­amente que a senhora seria uma péssima assistente. Documentár­io sobre arquitetos alemães construind­o ocas no Pará? Sim. Exposição fotográfic­a sobre um Natal em um manicômio de periferia? Sim. Todos trabalhos de conclusão de cursos, nenhum de conclusão de boletos e faturas atrasadas.

Eu os respeitari­a não fosse a boquinha de desdém quando descobrem meus projetos com propaganda ou cinema comercial. Xeu te contar uma coisa, anjo: não só não posso recorrer a um familiar quando a coisa aperta como ainda sou a única a quem eles recorrem quando as coisas lhes apertam. Então, fada letrada, não me venha com a decência heroica do artista miserável, me dando carteirada com sua virgindade na carteira de trabalho. Você não respeita quem comete uma piada chula pra pagar a drenagem linfática? Pois eu tenho preguiça eterna de herdeiro com mestrado em ciências sociais ensinando pobre a sobreviver.

Todos trabalhos de conclusão de cursos, nenhum de conclusão de boletos e faturas atrasadas

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