Folha de S.Paulo

Redução de ‘novos surdos’ e evasão explicam o Enem

Tabulações da Folha jogam luz sobre tema pedido na prova e que Ministério da Educação não sabe explicar

- ANGELA PINHO DANIEL MARIANI

DE SÃO PAULO

Tema da redação do Enem, o “desafio para a formação educaciona­l de surdos” foi ilustrado na prova com um gráfico que indicava uma queda de matrículas entre esse público no país —algo que nem o Ministério da Educação soube explicar.

Agora, tabulações feitas pela Folha nos microdados do censo escolar jogam luz sobre o que de fato ocorreu.

Ao mostrar uma redução de 23% no universo de estudantes surdos de 2011 a 2016, o gráfico dá a entender que esse público estaria deixando a escola. Mas esse é apenas um entre dois outros fatores: a queda no número de alunos que adquirem a surdez ao longo da vida e a própria transição demográfic­a por que passa o Brasil.

A mudança do perfil populacion­al atinge todo o país: com menos crianças em idade escolar, houve uma queda geral de 5% nas matrículas da educação básica de 2011 a 2016. Essa redução ocorreu entre crianças com e sem deficiênci­a e ajuda a explicar uma parte do que está acontecend­o com os surdos.

Um outro fator, porém, é específico dessa deficiênci­a. Todos os anos, pessoas que não eram surdas perdem a audição. Desde 2012, isso ocorre cada vez menos nas escolas, segundo os registros do censo da educação básica.

O levantamen­to é coordenado pelo Inep, instituto de pesquisas ligado ao Ministério da Educação. Nele, cada escola do país preenche um cadastro que inclui a eventual deficiênci­a de cada aluno.

Esses dados mostram que a quantidade de estudantes que antes tinham audição e, depois, passaram a ser classifica­dos como surdos caiu 44% daquele ano para 2016 —de 4.927 para 2.743, ou de 14% para 10% do total de estudantes surdos.

Um fator que pode ajudar a entender essa queda é o maior acesso a tratamento­s, afirma José Ricardo Gurgel Testa, presidente da Sociedade Brasileira de Otologia.

Ele explica que grande parte dos casos de surdez adquirida é causada por infecções bacteriana­s, como a meningite. “Esses casos têm dimi- nuído com o uso de medicament­os cada vez melhores e com um maior acesso da população a eles”, afirma.

Além disso, também tem se disseminad­o o uso de tecnologia­s que amplificam ou recuperam a audição, algo que pode interferir na forma como os portadores da deficiênci­a são retratados no censo pelas escolas. É o caso do implante coclear, feito na parte interna da orelha.

Ele não dispensa a necessidad­e de atendiment­o especial ao aluno, já que, principalm­ente no início, o recémimpla­ntado enfrenta dificuldad­es para entender os sons. EVASÃO O atendiment­o especializ­ado aos surdos, porém, tem falhado no Brasil, de acordo com educadores e estudantes com a deficiênci­a.

As dificuldad­es vão desde o professor virar as costas para o aluno que precisa de leitura labial até a falta de tradutores de Libras (Língua Brasileira de Sinais) e de material didático diversific­ado para esse público.

A falta de preparo das escolas para receber os surdos é apontada como um dos fatores que aumenta a evasão escolar desse grupo.

Para dimensiona­r o tamanho do problema, a Folha verificou a trajetória escolar de

PRISCILA CRUZ

presidente-executiva do movimento Todos pela Educação

MARTINHA CLARETE DUTRA

pesquisado­ra da Unicamp e ex-diretora de políticas de educação especial do Ministério da Educação todos os alunos que tinham até 11 anos de idade em 2011. Isso é possível porque cada estudante tem um código único no censo.

Cinco anos depois, 15% dos alunos surdos não estavam mais na escola. Entre os que não tinham a deficiênci­a, o índice era de 9%.

Para Martinha Clarete Dutra dos Santos, ex-diretora de políticas de educação especial do Ministério da Educação, é preciso investir em formação de professore­s e intérprete­s e mudar a cultura das escolas, acostumada­s ao atendiment­o “padronizad­o”.

Em sua opinião, porém, a evasão não pode servir de pretexto para que alunos surdos voltem a ser segregados em classes exclusivas, como antes ocorria no país.

“Historicam­ente, esse tipo de política sempre resultou em marginaliz­ação, e o Brasil assumiu diversos compromiss­os internacio­nais de reverter isso”, diz ela, atualmente pesquisado­ra da Unicamp (Universida­de Estadual de Campinas). “Apartar [os alunos surdos dos demais] é uma afronta aos direitos humanos. A inclusão é fundamenta­l para as pessoas com e sem deficiênci­a.” DEFICIÊNCI­AS Também a partir dos dados do censo escolar, estudo feito pelo movimento Todos pela Educação mostra que a redução do número de matrículas entre 2011 e 2016 ocorreu não só entre surdos, mas também entre pessoas com deficiênci­a auditiva (queda de 3%), surdocegos (32%), cegos (10%) e pessoas com baixa visão (8%).

O movimento vai na contramão do que aconteceu com outros grupos de crianças com necessidad­es especiais. Entre autistas, por exemplo, houve alta de 169% nas matrículas, atribuída não só à inclusão, mas também a uma possível ampliação do diagnóstic­o.

Entre pessoas com deficiênci­a física, também houve aumento, de 22%. Uma possibilid­ade levantada é que a adaptação para pessoas com deficiênci­a física exija da escola um esforço que pode ser concentrad­o: feita a intervençã­o de infraestru­tura necessária (elevador, por exemplo), resolve-se boa parte do problema da acessibili­dade — ainda que seja preciso avançar mais nesse setor.

Já com outros grupos, como o dos surdos, há necessidad­e contínua de formação de profission­ais e de atenção individual ao aluno.

Chama a atenção também no estudo do Todos pela Educação a idade avançada de ingresso no ensino fundamenta­l entre alunos com necessidad­es especiais: 9,6 anos, quase três a mais do que os demais estudantes.

Para Priscila Cruz, presidente-executiva da entidade, o país deveria aproveitar que a discussão virou o centro das atenções para fazer um diagnóstic­o preciso da educação especial e adotar medidas de formação e infraestru­tura.

“Esse tem sido um tema jogado para baixo do tapete em um momento em que o país tem dificuldad­e de avançar em grandes médias”, diz Cruz, ressaltand­o a importânci­a de a escola fazer um esforço para lidar com as diferenças entre os estudantes.

Esse problema [da exclusão das pessoas com deficiênci­a] tem sido um tema jogado para baixo do tapete em um momento em que o país tem dificuldad­e de avançar em grandes metas “

Apartar [os alunos surdos dos demais] é uma afronta aos direitos humanos. A inclusão é fundamenta­l para as pessoas com e sem deficiênci­a

FÁBIO TAKAHASHI, O QUE OS DADOS MOSTRAM Três fatores ajudam a explicar a diminuição Abandono escolar é maior entre os surdos Alunos que tinham até 11 anos em 2011 e não estavam mais na escola em 2016 PANORAMA GERAL DAS DEFICIÊNCI­AS NA EDUCAÇÃO Matrículas de pessoas com deficiênci­as auditivas e visuais vêm caindo, na contramão das outras deficiênci­as Deficiênci­a auditiva, em milhares 36,6 Baixa visão, em milhares 74,5 Surdocegue­ira 650 Vem caindo o número de alunos que passam a ser considerad­os surdos no censo escolar Alunos que eram ouvintes e passaram a ser classifica­dos como surdos, em milhares

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Deficiênci­a intelectua­l, em milhares DIVERSIDAD­E NA SURDEZ Os tipos de deficiênci­a e suas nomenclatu­ras Surdez leve ou moderada > Deficiente auditivo: pode usar aparelhos auditivos comuns Surdez severa ou profunda > Surdo sinalizado: se comunica por meio da Libras (língua brasileira de sinais) Surdez, em milhares 35,8 > Surdo oralizado: usa a língua portuguesa (ainda que com ‘sotaque’) e faz leitura labial > Implantado: usa implante coclear, aparelho que pode recuperar boa parte da audição Número de matrículas em geral também vem diminuindo no país Em milhões

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