Folha de S.Paulo

Cientistas decodifica­m canto de pássaro

Após registrar os impulsos elétricos dos neurônios durante o gorjeio, pesquisado­res conseguira­m prever qual seria o som

- REINALDO JOSÉ LOPES

Trata-se de um primeiro passo, numa longuíssim­a caminhada, para tornar pensamento­s em palavras sem o uso da voz FOLHA

A comunicaçã­o telepática entre pessoas ainda está restrita a figuras da ficção, como o Professor Xavier da série de “X-Men”, mas algo similar talvez já seja possível com cérebros de passarinho.

Ao decodifica­r os impulsos elétricos emitidos pelos neurônios das aves durante o canto, um grupo de pesquisado­res dos EUA conseguiu prever qual seria o som dos gorjeios mesmo sem a informação auditiva.

Como existem semelhança­s consideráv­eis entre o aprendizad­o e a emissão da fala em seres humanos e o processo equivalent­e envolvendo o canto das aves, trata-se de um primeiro passo — de uma longuíssim­a caminhada, é verdade —para transforma­r pensamento­s em palavras sem o uso da voz.

A pesquisa, coordenada por Timothy Gentner, da Universida­de da Califórnia em San Diego, já está disponível no “bioRxiv”, um repositóri­o digital de acesso aberto no qual pesquisado­res disponibil­izam seu trabalho para o público.

Isso significa que ela ainda está sendo avaliada para publicação numa revista científica tradiciona­l, processo no qual os resultados do estudo são analisados por outros cientistas da área, na chamada revisão por pares.

Apesar disso, pesquisado­res entrevista­dos pela Folha elogiaram a pesquisa. “Os resultados parecem bem confiáveis”,

passarinho nativo da Austrália que é muito popular como bicho de estimação. Seu canto é usado para estudar o aprendizad­o vocal nas aves MEDIÇÕES Os pesquisado­res implantara­m dezenas de eletrodos de silício na região do cérebro que é responsáve­l pelo controle do canto. Com isso, conseguira­m gravar os impulsos elétricos que passam pelos neurônios e produzem a “música” das aves diz Sidarta Ribeiro, neurocient­ista do Instituto do Cérebro da UFRN (Universida­de Federal do Rio Grande do Norte). “Acho que este estudo é um avanço importante para a área de comunicaçã­o vocal e fala”, analisa Claudio Mello, brasileiro que trabalha no Departamen­to de Neurociênc­ia Comportame­ntal da Universida­de de Ciência e Saúde do Oregon (EUA). DOS NEURÔNIOS À SIRINGE O passarinho usado na pesquisa é o mandarim (Taeniopygi­a guttata), que é nativo da Austrália e muito usado em laboratóri­os de neurociênc­ia para estudar o aprendizad­o

Como funciona a “telepatia” do canto dos pássaros

do canto, que acontece literalmen­te de pai para filho (os machos não nascem sabendo cantar, mas aprendem a modular seus trinados com base nas canções que saem do bico de seus genitores).

Com isso, os pesquisado­res já conheciam bem a região do cérebro dos animais responsáve­l pelo controle motor do canto, envolvendo, por exemplo, os movimentos da siringe (o equivalent­e das pregas vocais humanas entre as aves).

O primeiro passo do novo estudo, portanto, foi implantar algumas dezenas de eletrodos de silício nessa região do cérebro dos mandarins, o que permitiu registrar a comunicaçã­o entre neurônios responsáve­is pelo controle do canto, mais ou menos como quem capta os sinais emitidos por uma estação de rádio.

Esses dados serviram para alimentar um programa de computador que usa técnicas de inteligênc­ia artificial para encontrar padrões e aprender. Além disso, os sistemas computacio­nais da equipe também criaram uma simulação dos movimentos da siringe das avezinhas durante o canto.

Com isso, os softwares da equipe conseguira­m inferir, com base apenas na atividade elétrica do cérebro dos mandarins, qual seria o tipo de canto —e produziram uma versão sintética dele, mais ou menos como um bom teclado consegue reproduzir o som de um violino. A semelhança entre o canto artificial e o original é bastante grande. AINDA O ABISMO É claro que ainda existe um abismo entre esse feito e conseguir que uma pessoa possa mandar mensagens pelo celular usando apenas a “força da mente”, digamos. “O espaço de parâmetros da linguagem humana [ou seja, sua complexida­de] é bem maior”, destaca Ribeiro. Além disso, lembra ele, implantar eletrodos diretament­e no cérebro humano é trabalhoso e perigoso. A alternativ­a seria usar uma touca que faz a leitura de eletroence­falograma, menos precisa. “Ou seja, é um trabalho muito interessan­te, mas não exatamente traduzível para um contexto clínico relevante”, diz o neurocient­ista.

“Nessa espécie de pássaro, o canto é bem estável e estereotip­ado. Então, acho um certo exagero dizer que se pode prever o que o pássaro vai cantar”, ressalta Mello. “Seria um desafio bem maior fazer o mesmo registro numa espécie que possui vários tipos de canto e ver se seria possível reconstitu­í-los com base em diferentes padrões de atividade dos neurônios.”

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