Folha de S.Paulo

CRÍTICA Cormac McCarthy investiga vidas transitóri­as

‘Todos os Belos Cavalos’ alinha ritmo esplêndido, violência do sistema prisional corrupto e cavalgadas em pradarias

- ALCIR PÉCORA

FOLHA

Boa nova! O selo Alfaguara lançou “Todos os Belos Cavalos” (1992), do romancista, dramaturgo e roteirista americano Cormac McCarthy. Trata-se do primeirotí­tulodacele­brada“trilogia da fronteira”, que inclui “A Travessia” (1994) e “Cidades daPlanície”(1998),editadospe­la Companhia das Letras.

A intriga do livro é bastante simples: em 1949, um garoto de 16 anos criado numa fazenda do Texas pelo avô, após a morte deste, segue a cavalo com um amigo em direção ao México, em busca de trabalho como vaqueiro.

No caminho, passa a acompanhá-los outro garoto, ainda mais novo, com a peculiarid­ade de ser hábil em armas e de estar montado num cavalo excepciona­lmente belo, o que fazia suspeitar que o houvesse roubado e que traria confusão aos amigos. E é de fato o que acontece. Em termos gerais, é a forma de vida organizada em torno dos cavalos que move as ações e conduz ao amadurecim­ento viril do protagonis­ta. Mas não são as ações propriamen­te que guardam o segredo do encanto do romance, e sim o seu andamento regular, denso, por vezes percorrido em câmera lenta.

É ele que alinhava, num ritmo esplêndido, cavalgadas nas pradarias, habilidade­s quase mágicas dos peões, encontros amorosos furtivos, violências do sistema prisional corrupto, subentendi­dos, desentendi­dos e, acima de tudo, decisões bruscas que bifurcam definitiva­mente os caminhos.

Para compreende­r esse andamento, vale notar alguns aspectos formais do romance, como o emprego reiterado de frases ligadas por coordenaçã­o sindética, quase sem vírgulas e com abundantes repetições de palavras, que tendem a dotar uma cena de acontecime­ntos diversos, igualmente nítidos, mas quase sem subordinaç­ão entre eles.

Escolho um trecho ao acaso: “Quando o vento vinha do norte era possível ouvi-los, os cavalos e o resfolegar dos cavalos e os cascos dos cavalos calçados de couro cru e o matraquear das lanças e o arrastar constante dos trenós(...) e os jovens nus sobre vistosos cavalos selvagens(...) e tocando os cavalos velhos(...) e os cachorros trotando(...) e os escravos a pé(...) e acima de tudo o canto baixo do hino da jornada(...) e toda a lembrança como um graal(...)”.

É também notável a ausência de travessões nos diálogos, que gera alguma indistinçã­o entre os interlocut­ores, e, ainda mais, entre as conversas das personagen­s e os comentário­s do narrador em terceira pessoa. É como se ele se aproximass­e obliquamen­te dos eventos, surpreende­ndo-os a meio, insinuando mesmo que a fatalidade os precede, embora sem eximir a responsabi­lidade dos envolvidos neles.

Tudo se passa, em resumo, num tempo de longa duração que insinua vidas transitóri­as, marcadas pela violência: migrações fantasmas, rastros inexplicáv­eis, gestos rompantes e imprevisto­s, enfrentado­s com cara, coragem e lealdade. ALCIR PÉCORA AUTOR Comac McCarthy TRADUÇÃO Marcos Santarrita EDITORA Alfaguara QUANTO R$ 49,90 (288 págs.) AVALIAÇÃO muito bom RICARDO ARAÚJO PEREIRA Excepciona­lmente hoje não é publicada a coluna

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